“Camarada Presidente, quando acaba isto da independência?” — uma das histórias que, como hoje se diria, viralizou no pós-independência de Angola dava conta da pergunta formulada por um chefe local ao presidente do novo país: “Camarada Presidente, quando acaba isto da independência?” A pergunta era feita não porque o homem estivesse contra a independência mas sim porque a violência e a destruição alastravam ao seu redor enquanto um futuro radioso lhe era prometido a si e aos seus.
Provavelmente pouco existe de rigoroso neste episódio, mas a forma como ele acabou a fixar-se na nossa memória dá conta da sua capacidade de resumir numa curta frase o absurdo que se instala nos momentos em que a realidade corre em sentido inverso ao da propaganda.
Ora é precisamente essa sensação de absurdo que sobressai da forma como se olhou para esta campanha nos EUA. E não, não estou a referir-me à preferência pela candidata Democrata ou à enésima história sobre os erros de Trump. O que está em causa também não é apenas nem sobretudo uma questão de apoio a um candidato e até o clássico enviesamento político, mas sim a adopção duma perspectiva militante que tudo desfoca e no limite impede a notícia, descredibilizando o jornalismo.
A forma como o direito ao aborto nos EUA foi sendo tratado noticiosamente é um bom exemplo dessa perversão em que a militância jornalística matou a notícia e no limite o jornalismo.
Recuemos dois anos. Quem, em Junho de 2022, lesse, visse ou ouvisse a maior parte dos canais noticiosos concluiria que o Supremo Tribunal dos EUA estava a por em causa o direito ao aborto ao revogar o despacho conhecido como “Roe v. Wade”, que garantia o direito constitucional à interrupção voluntária da gravidez. Afiançava-se que os EUA estavam num retrocesso, (entenda-se por retrocesso o não cumprimento da escatologia progressista do momento). Na verdade, não era isso que estava a acontecer: o Supremo simplesmente considerou que deviam ser os diferentes estados a decidirem sobre essa matéria. Mas a vontade de dizer que o direito ao aborto estava a ser posto em causa por um Supremo de predominância republicana era tal que se passou por cima desse ponto.
Em seguida fomos bombardeados com a ameaça para o direito ao aborto que uma vitória do Partido Republicano nas presidenciais de 2024 inevitavelmente traria. Daí a concluir que as mulheres votariam Democrata para que o “retrocesso” não acontecesse foi um ápice. É caso para dizer que da mentira — Trump não é nem deixa de ser contra o aborto, defende sim que a decisão sobre o aborto deve ser de cada estado — nasceu um engano: não só as mulheres não elegeram Kamala, como em vários estados agora ganhos pelos republicanos os eleitores votaram favoravelmente o aborto. Ou aquilo que nos EUA se chama aborto e que em alguns estados na verdade é infanticídio: o aborto até aos oito meses de gestação (ou mesmo mais) já era permitido em estados como o Alasca, Novo México, Vermont ou Minnesota. Agora vai passar a sê-lo também no Montana e Missouri, ganhos por Trump, e no Maryland, ganho por Kamala.
Mas nesta visão militante da realidade quase não há espaço para se tratar dos prazos para a realização de abortos nos EUA (e também na Colômbia ou no Reino Unido) porque obviamente detalhá-los destrói a propaganda das mulheres em luta pelos seus “direitos reprodutivos” e confronta-nos com a imagem de bebés a serem mortos.
O estrondo da derrota de Kamala está a levar a uma espécie de caça aos culpados. Deixando de lado a culpabilização de Biden por este não ter as capacidades que os seus agora detractores garantiam que ele tinha (a propósito como foi possível até 28 de Junho, dia do debate Biden-Trump, não ter tido destaque noticioso o facto de o presidente dos EUA estar notoriamente fragilizado?), está a tornar-se evidente que o wokismo terá sido grandemente responsável pelo desastre dos Democratas. O que provavelmente vai levar os até agora prosélitos dessa perspectiva política a deixarem-na cair como quem muda de camisa. Mais provavelmente ainda, a propaganda do momento presente será substituída por outra ainda mais distópica, mas que num aṕice se tornará na nova verdade urgente. E mais uma vez, para não estragar a epopeia progressista, vai omitir-se o que é inconveniente e transmitirem-se outras crenças, enquanto se subestimam os factos.
Agora a sério, camaradas jornalistas (e não só), quando acaba o activismo? É melhor que se apressem a responder a esta pergunta porque o jornalismo não pode esperar por muito mais tempo.
“Guterres chocado”. Não sei o que será das nossas vidas no dia em que deixarmos de ter “Guterres chocado”.Esta semana foi a vez do “Guterres chocado com violência em Amesterdão condena antissemitismo e islamofobia“, isto a propósito do ataque em Amsterdão aos adeptos israelitas por parte de grupos que se apresentavam como pró-palestinianos. Se não for muito pedir, António Guterres pode explicar como se deviam ter comportado os sovados e perseguidos adeptas israelitas de modo a não serem acusados de islamofobia?