Segundo o último relatório do Instituto Internacional para a Democracia e Assistência Social (Internacional Idea), de Estocolmo – divulgado pela ex-Ministra da Justiça, Paula Teixeira da Cruz, no Público de 24-11-2021 – Portugal, em relação ao ano 2019, sofreu “um retrocesso no que concerne à independência judicial, à corrupção e à igualdade perante a lei”, sendo “o único país da Europa Ocidental a registar tal retrocesso em sede de avaliação nestes itens.”
No mesmo jornal, na edição do dia seguinte, João Miguel Tavares recordou que, nessa semana, fazia “sete anos que José Sócrates foi preso à chegada de Paris” e que o ex-primeiro-ministro socialista “perdeu mais uma das muitas dezenas (em breve, centenas) de recursos que já interpôs no âmbito da Operação Marquês a propósito de tudo e um par de botas, com o senhor juiz desembargador a notar que o requerente tem vindo a investir ‘numa interminável rotação de requerimentos/reclamações/decisões/recursos’, não parecendo muito interessado em chegar a uma ‘boa decisão do processo’.”
Este ex-primeiro-ministro português beneficia da morosidade da justiça portuguesa que, pelo contrário, foi tão nociva para o primeiro-ministro que, faz hoje precisamente 41 anos, foi assassinado em Camarate. Quatro décadas não foram suficientes para que a justiça portuguesa resolvesse um dos maiores escândalos judiciais da História de Portugal: o atentado que vitimou o primeiro-ministro, Dr. Francisco Sá Carneiro e o seu chefe de gabinete, Dr. António Patrício Gouveia, o Engº Adelino Amaro da Costa, ministro da Defesa, as mulheres dos dois membros do Governo e os pilotos.
Em boa hora o Dr. Alexandre Patrício Gouveia publicou, em 2019, uma exaustiva investigação sobre Os mandantes do atentado de Camarate, com prefácio do Professor Doutor Diogo Freitas do Amaral. Poder-se-ia supor que um irmão de uma vítima não tem, por esse seu tão próximo parentesco, as condições de imparcialidade e objectividade necessárias para ajuizar um facto que lhe é, não obstante os anos volvidos, tão doloroso. Porém, como esclarece Freitas do Amaral, o autor, “sem se deixar dominar pelo desgosto traumático que sofreu”, conseguiu “investigar e redigir um livro tão objectivo e rigoroso quanto o faria um escritor que não fosse familiar de nenhuma das vítimas. Um livro que […], de forma rasgadamente inovadora, aborda o problema das causas e dos responsáveis da tragédia de Camarate numa perspectiva até aqui ignorada ou esquecida: a de uma possível interferência estrangeira”.
No prefácio, a que também pertencem as demais citações literais, Freitas do Amaral constata que “o desastre ocorrido em Camarate (concelho de Loures), a 4 de Dezembro de 1980, foi objecto de duas linhas de investigação paralelas que nunca convergiram: a linha das autoridades administrativas e judiciais (Polícia Judiciária, Direcção-Geral da Aviação civil, Ministério Público, e dois Tribunais): durou apenas 15 anos e foi sempre concluindo que Camarate não fora um crime, mas um mero acidente fortuito; a linha das Comissões Parlamentares de Inquérito, criadas na Assembleia da República, com participação de Deputados de todos os partidos e de representantes das famílias das vítimas: durou 35 anos (mais do dobro da primeira) e, aos poucos foi encontrando provas, cada vez mais fortes, de que Camarate havia sido um crime.”
Ao contrário do que seria de esperar, a primeira linha de investigação foi a que, contra todas as evidências, defendeu aprioristicamente a tese do acidente. A conveniência política deste resultado ditou, no abalizado parecer de Freitas do Amaral, uma série de anomalias, como “o afastamento de inspectores que achavam [que tinha sido um atentado], a lentidão excessiva na recolha de elementos de prova, a recusa de exames laboratoriais indispensáveis, e a sistemática qualificação das testemunhas de forma preconcebida: se afirmavam factos (por ex., a explosão da avioneta no ar, enquanto subia) que apontavam para a ideia de atentado, eram todas consideradas não credíveis – mesmo que se tratasse de pessoas de grande confiança, como o agente da PSP que chefiava a segurança pessoal do Primeiro Ministro –; se afirmavam factos diferentes (por ex., que a avioneta só se incendiara depois de cair no chão), eram todas declaradas como muito credíveis – mesmo que se tratasse de pessoas completamente desconhecidas e que só ‘viram’, por acaso, a queda do avião ao volante de automóveis em andamento rápido, no troço final da auto-estrada Lisboa-Porto, em frente à zona Portela-Camarate. Dois pesos, duas medidas.”
De facto, “a actuação do Ministério Público no caso Camarate […] não partiu da ignorância dos factos e das causas para a descoberta das provas, e daí para a avaliação destas e para a solução das respectivas contradições, com vista a chegar à conclusão sobre se houve ou não crime. Pelo contrário, partiu da prévia convicção (intuitiva?) de que não tinha havido crime e, com base nessa convicção, fez a lista dos argumentos e das provas mais convenientes para justificar a conclusão, decidida a priori, sem nunca admitir ou ponderar os argumentos ou as provas que apontavam no sentido contrário. Esclarecedor …”
Paradoxalmente, a investigação parlamentar, que parecia ser a que mais riscos corria de ser enviesada e parcial foi, na realidade, a mais isenta e objectiva: “as investigações das Comissões Parlamentares de Inquérito, no âmbito da Assembleia da República, correram realmente muito bem, pois sempre foram orientadas pela ideia da descoberta da verdade, ouviram muitas dezenas de testemunhas e de peritos, e basearam-se em exames laboratoriais de carácter científico.”
Para o autor do prefácio, “a melhor prova de que as Comissões Parlamentares de Inquérito fizeram um trabalho honesto, imparcial e convincente, está nisto: as conclusões propostas pelo PSD e pelo CDS nas 4 Comissões, entre 1982 e 1991, – que apontavam apenas para a possibilidade de ter havido crime em Camarate – não conseguiram convencer nem o PS, nem o PCP, nem o MDP/CDE. Mas, no final dos trabalhos da 5ª Comissão (1995) – ao mesmo tempo que se concluía, sem margem para dúvidas, que o Cessna se tinha despenhado em resultado da explosão a bordo de uma bomba muito potente quando ele ainda estava no ar, e em rota ascendente (o que significava um atentado) – foi essa a primeira vez que, simultaneamente, tanto o PS como o PCP e o MDP/CDE aprovaram, ao lado do PSD e do CDS, por unanimidade, a conclusão (1ª) de que a avioneta caiu por ter sido destruída e incendiada por uma bomba de grande teor explosivo, deflagrada com a aeronave ainda a subir; e, por maioria superior a 2/3 (apenas com a abstenção do PCP), a conclusão (2ª) de que isso evidenciava a existência de um atentado.”
Note-se, contudo, que “o PCP não votou contra esta 2ª conclusão, que era uma decorrência lógica da 1ª, em que tinha votado a favor, mas apenas se absteve, por entender que, no plano jurídico, a qualificação de um facto como crime pertence aos Tribunais, e não ao Parlamento.” Por que razão, então, o Ministério Público e os Juízes não acolheram esta conclusão evidente?! Porque consideraram as conclusões das Comissões Parlamentares de Inquérito “irrelevantes”, pois eram “determinadas por motivações partidárias”! Mas, como muito bem contrapõe Freitas do Amaral: “Está-se mesmo a ver, não está? Com Cavaco Silva em primeiro-ministro, e dispondo de uma maioria absoluta formada exclusivamente pelo seu partido, o PS, o PCP e o MDP/CDE a quererem, por razões partidárias, fazer um favor político ao PSD e ao CDS!”
Diga-se ainda que, “a partir da 6ª Comissão (1996) e até à 10ª, que foi a última (2015), as duas referidas conclusões da 5ª Comissão foram mantidas e sempre repetidas, com as mesmas votações.”
De todas as justiças europeias, a portuguesa foi a única a ser condenada pelo Instituto Internacional para a Democracia e Assistência Social: que vergonha para Portugal! Mas forçoso é reconhecer que, tanto o caso Camarate como a Operação Marquês provam que, infelizmente, o nosso país tem ainda muito a melhorar “no que concerne à independência judicial, à corrupção e à igualdade perante a lei.” É pena, porque Sá Carneiro e Amaro da Costa, bem como as demais vítimas, mereciam que se lhes tivesse feito justiça. Portugal também.