Há uns dias, discutiu-se na Assembleia da República a possibilidade de legalizar o auto-cultivo de canábis para fins medicinais. PSD e CDS de um lado, PS e Bloco de Esquerda do outro e fica o PCP a fazer de fiel da balança. Sobre as propriedades medicinais da canábis, especialmente quando fumada, David Marçal escreveu um bom artigo sobre o assunto. Para quem não leu,apresento o resumo: esta droga tem comprovadamente alguns efeitos terapêuticos. Mas, na verdade, não são assim tantos como isso e muitos dos alegados efeitos benéficos estão por demonstrar.
É compreensivelmente difícil ser-se contra o uso da canábis para fins terapêuticos. Pode até argumentar-se que, estando-se a discutir o uso médico de uma droga, nem compete aos deputados decidir sobre isso. O assunto estaria bem entregue a autoridades médicas e farmacêuticas. Mas, como é evidente, muitas vêem nesta hipótese do auto-cultivo simplesmente uma forma de legalizar a produção para uso recreativo pela porta do cavalo. E não serei eu a negar que essa interpretação é perfeitamente válida. O que deveríamos estar a discutir é se se deve simplesmente liberalizar e regulamentar o cultivo e a venda de drogas leves.
Discutir este assunto é sempre difícil. Há sempre um moralista que conta a história de um grande amigo que começou por fumar uns charros e que depois se perdeu para a vida entregando-se aos braços da heroína ou de outra droga pesada. Desta vez, foi Henrique Raposo a contar uma dessas histórias. A história que Raposo conta é verídica e, com certeza, muitos conhecem casos semelhantes. O problema dela é que, apelando ao nosso lado emocional, deixa a lógica de lado. Por vários motivos.
Em primeiro lugar, essa descrição da escalada das ganzas até ao cavalo costuma estar incompleta. Na verdade, quando se começa a fumar uns charros às escondidas, já antes se andou a mexer dos bolsos dos pais para sacar uns cigarros, que seriam também fumados às escondidas. Ou seja, pelo mesmo argumento, também o tabaco devia ser ilegal. Não defendendo a ilegalização do tabaco (embora já se tenha estado mais longe), o argumento fica coxo.
Em segundo, esquece que há drogas com efeitos tão ou mais graves que a marijuana ou o haxixe, como o álcool, que também causa dependência, que também destrói vidas. Que, de certa forma, até são mais perigosas: é muito mais fácil entrar em coma alcoólico do que fumar uma overdose de marijuana (nem penso que tal seja possível). É muito fácil encontrar histórias semelhantes à que Raposo contou, mas em que a estrada percorrida para a perdição foi com a bebida. Se o álcool é permitido, se o cultivo de vinhas é legal, não encontro grande motivo para que a marijuana não o seja.
Em terceiro, descreve uma tragédia que aconteceu num determinado quadro legal. Ou seja, para evitar essa tragédia, esse quadro legal não era o ideal, como é óbvio. Eu até argumentaria, e estou a especular, que esse quadro legal favoreceu a passagem do amigo de Raposo das drogas leves para as duras. É que, sendo o haxixe ilegal, ocasionalmente o mercado falha— seja porque houve uma grande apreensão por parte da polícia, seja por outro motivo — e quem quer comprar não consegue. E é nessas alturas que alguns dealers aproveitam para vender drogas mais pesadas. Isto quando não são os próprios vendedores a artificialmente provocar a escassez de drogas leves com o fito de iniciar a malta nas drogas duras. É que quem ilegalmente vende uma vende a outra. Se a marijuana fosse legal, essa falha no mercado que abre a porta às drogas mais duras seria bem mais rara.
Vale a pena pensar sobre este último motivo. Na Assembleia da República, o líder de uma visão anti-proibicionista da droga em Portugal foi Almeida Santos que — é conhecido — perdeu uma filha para as drogas nos anos 90. Se Almeida Santos teve a coragem e a inteligência de apoiar a despenalização do consumo das drogas em Portugal, que tão bons resultados teve, fazendo de Portugal um exemplo mundial, devemos esforçar-nos por respeitar a sua memória não usando tragédias pessoais como argumento contra uma visão mais moderna das drogas.
Pondo as tragédias pessoais de parte, podemos discutir com argumentos mais racionais. Se é verdade que fomos aventureiros quando avançámos para a descriminalização de todas drogas, também é verdade que, se avançarmos para a legalização da canábis, não seremos os primeiros. Já temos a experiência de outros países que nos podem dar algumas indicações. Na Holanda, que nunca chegou verdadeiramente a legalizar a canábis, não houve nenhuma catástrofe com as suas famosas coffee shops. Os efeitos sobre a criminalidade foram mínimas e o mesmo quanto aos efeitos sobre o consumo.
Também no Colorado, Washington, Alaska e Oregon, estados norte-americanos, o uso e o comércio para fins recreativos de drogas foi legalizado e nada de grave aconteceu. Os relatórios disponíveis mostram que a criminalidade não aumentou (até diminui), o consumo de marijuana não parece ter aumentado e nem os acidentes de automóveis aumentaram. Quanto a efeitos benéficos, há um efeito directo positivo sobre as finanças públicas, não só porque, ao ser uma actividade legal, paga impostos, como as restantes actividades, como também pelo dinheiro que se poupa dinheiro no combate à criminalidade associada a esta droga.
Ou seja, estamos perante uma situação em que nenhum dos efeitos negativos se verificam e os efeitos positivos são visíveis: aumenta-se a liberdade das pessoas, reconhecendo que são adultos capazes de tomar as suas decisões, e aumentam-se as receitas fiscais em centenas de milhões de dólares.
Mas, na verdade, todos nós sabíamos que era assim que se ia passar. O que não faltam são filmes e séries sobre a lei seca (e a actividade criminal a ela associada) nos Estados Unidos entre 1920 e 1933. O fim da lei seca, não só não trouxe nenhum drama, como permitiu resolver vários dramas. A lei seca foi instaurada com a décima oitava emenda à Constituição norte-americana e foi revertida pela vigésima primeira emenda. É o único caso de uma emenda que foi emendada por outra emenda.
Mas a lição da lei seca norte americana é também muito útil de um ponto de vista comercial. Como sabemos, actualmente, os principais produtores de whisky são a Escócia e os Estados Unidos. Mas, no século XIX, o whiskey irlandês competia com o escocês pela posição dominante a nível mundial. Por uma série de vicissitudes, o whiskey irlandês perdeu esse domínio. Um dos principais motivos foi mesmo a lei seca norte-americana. A partir do momento em que se tornou ilegal a exportação de álcool para os EUA, os irlandeses perderam grande parte do seu mercado. Já os escoceses foram muito mais eficientes na criação de rotas ilegais para o seu whisky, conseguindo até aproveitar um buraco na legislação para ser exportado para fins medicinais, criando uma excelente reputação no mercado.
Ou seja, a lei seca nos EUA foi uma excelente oportunidade de negócio para os escoceses, que ainda hoje beneficiam dela. A verdade é que Portugal pode beneficiar das mesmas condições, só que no campo da marijuana. Empresas estrangeiras já têm em Cantanhede plantações de marijuana para exportação. O nosso clima e o nosso solo parecem ser perfeitos para o efeito. Para já, a exportação é apenas para fins medicinais. Mas, claramente, o mercado está a alargar-se — no Uruguai, na Califórnia e em Vermont também já é legal — e será uma questão de tempo até o seu consumo recreativo ser legal em muitos mais países.
Portugal tem aqui uma oportunidade de ouro para avançar, ser dos primeiros e ganhar reputação. E, uma vez alcançada a reputação internacional, poderemos dela beneficiar durante muitas décadas. Era uma pena perder esta oportunidade apenas pelas teias de aranha que muita gente tem na cabeça.