Carmo Afonso, a advogada que, nos últimos anos, tem protagonizado alguns dos mais rasteiros momentos do comentariado nacional — como, por exemplo, este seu rol de boatos e insinuações sobre a vida privada de Sebastião Bugalho —, brindou-nos neste 10 de Junho, Dia de Portugal, com um apelo a que se alterem os programas do ensino da nossa História.

Incomodada com o orgulho que os portugueses têm no seu passado, acha que isso tem de ser revisto a começar logo nos bancos da escola. Efectivamente, Carmo Afonso considera que a História que nos foi e continua a ser ensinada é uma “visão benigna” de um passado que, ao contrário da famosa canção dos Da Vinci, “tem mais de subjugação, escravidão e sangue do que de cultura e ternura”. Pretende, por isso, que se acrescentem “outros factos à narrativa idílica dos Descobrimentos”. Deseja, por exemplo, que se fale “da chegada dos barcos portugueses carregados de escravos aos portos da Europa”, nomeadamente aos portos holandeses. Quer que se refira o cheiro que, com vento de feição, precedia esses navios e que, segundo Carmo Afonso, resultaria “da exploração terminal dos corpos, do suor e da morte.” Acha que tudo isso são aspectos do “colonialismo” que erradamente o Portugal democrático nunca criticou como deveria. Em consequência dessa omissão o país tem agora, segundo Carmo Afonso, “um trabalho ciclópico pela frente” que obriga a “aprofundar a disciplina de História e acrescentar-lhe factos.”

Sucede, porém, que os factos que a cronista Carmo Afonso quer acrescentar estão errados ou muito torcidos. O “colonialismo” foi um sistema de exploração económica e de dominação política que, em África, foi posto em marcha na parte final do século XIX e na primeira metade do século XX, numa altura em que o tráfico transatlântico de escravos já tinha terminado. Não são coisas contemporâneas nem interligadas. Por outro lado, o tráfico negreiro, levado a cabo em navios portugueses e de outras nações ocidentais, não visava trazer escravos para os portos da Europa — isso foi muitíssimo marginal na história do tráfico, constituindo cerca de 0,1% do seu total —, mas sim para as Américas. Não me consta que os portugueses tenham carregado navios de escravos para irem desembarcá-los a Roterdão. Acresce que o cheiro dos navios não era necessariamente o cheiro da morte. Morria-se nos navios negreiros, sim, mas as tripulações não conservavam os cadáveres a bordo, fossem eles de escravos ou dos marinheiros — que também morriam. O cheiro dos navios tinha que ver com condições de higiene, falta de arejamento e outras causas. Aliás, como Vitorino Magalhães Godinho há muito sublinhou, os holandeses elogiavam as condições de transporte a bordo dos negreiros portugueses. Tudo é relativo, não é? Mas como Carmo Afonso nunca leu Magalhães Godinho e outros historiadores conhecedores da matéria — ou, se o fez, nada aprendeu —, e quer, por opção ideológica, pintar em tons ainda mais tenebrosos aquilo que já de si é negro na história do império português, bombardeia-nos com esta prosa de pôr cabelos em pé.

Esta pequena amostra de erros encavalitados uns nos outros alerta-nos para um problema central do wokismo no que se refere ao ensino da História: os woke querem substituir uma narrativa histórica que consideram incompleta e parcial, por outra que é francamente ignorante. Mais. Nunca nos dizem de que conteúdos e informações do actual programa de História iriam prescindir para incluirem os tais “outros factos” que Carmo Afonso reivindica — e era imprescindível que o dissessem.

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A História que ensinamos às nossas crianças e adolescentes está cheia de omissões. É inevitável que assim seja porque o tempo lectivo é limitado e há que escolher muito criteriosamente o que cabe dentro desse tempo e dentro da aprendizagem (ou da memória) dos alunos. O problema das omissões é, aliás, comum a todo o estudo de História, mesmo para adultos e mesmo para historiadores. A História é uma narrativa e não é possível, ainda que se quisesse, narrar tudo o que aconteceu em cada segundo, sob todos os pontos de vista e em todos os cantos da terra. A História é, portanto, um saber muito incompleto, e, repito, cheio de omissões, e isso é ainda mais evidente e inescapável ao nível do ensino básico e secundário. Querem um exemplo? Quando eu dava aulas no secundário, nos já longínquos anos 70 e 80 do século passado, a história de Alexandre Magno não fazia parte do programa nem constava dos manuais pelos quais os alunos estudavam. Os políticos que então governavam a área da educação tinham decidido omitir esse acontecimento central da História da humanidade e das relações euro-asiáticas, e posto em seu lugar e de outros acontecimentos omitidos, dando-lhes grande destaque, abstrações e conceitos marxistas como “luta de classes”, “modo de produção”, etc.

Quero com este exemplo mostrar que há, sempre houve e sempre haverá omissões porque existem, a montante, opções políticas e educativas, e porque o tempo lectivo nas escolas não dá para tudo. Mas o colega Miguel Barros, presidente da Associação Portuguesa de Professores de História e outras pessoas de extrema-esquerda — espero não estar a ser injusto para com o colega Miguel Barros — vêem certas omissões como ocultações, algo feito de propósito para esconder qualquer coisa. Esta é uma nuance que diz muito sobre a forma como estas pessoas se posicionam e sobre a posição a partir da qual tentam mudar o ensino.

Omitir e ocultar não são sinónimos. O verbo omitir significa não mencionar, passar em silêncio, deixar de dizer algo, mas o verbo ocultar significa habitualmente encobrir fraudulentamente, sonegar, esconder, impedir que se saiba, manter secreto. Certa esquerda acha que o que se passa nas nossas escolas, no que se refere ao ensino da História, não é uma omissão, mas sim uma ocultação, e, em conformidade, considera que é preciso reformular o conteúdo dos manuais escolares portugueses porque, como diz a notícia do DW, “eles mostram apenas uma das facetas da História de Portugal e ocultam (sic), por exemplo, os horrores da violência colonial contra as populações indígenas em África”. Miguel Barros, num registo penitente, considera que “temos de assumir aquilo que fizemos e se calhar mudar, nalguns casos, radicalmente, as narrativas que são contadas oficialmente.” Ou seja, Miguel Barros, Carmo Afonso e outras pessoas que pensam como eles, mantém a pressão sobre o Ministério da Educação para que os manuais sejam alterados de forma a que passem a expor a violência dos antigos portugueses e, se possível, a perspectiva do outro — neste caso a perspectiva do colonizado, do escravizado, do trabalhador forçado, etc.

Trata-se de um objectivo muito interessante historiograficamente falando, que é sem dúvida enriquecedor, mas que a nível do ensino básico é um disparate. Se seguíssemos esse critério teríamos de incluir, de forma sistemática, nos manuais para alunos do ensino básico, o contraponto da visão portuguesa. Por outras palavras, teríamos de dar a esses alunos os sentimentos dos povos orientais que contactaram com os portugueses no século XVI; a visão dos militares dos exércitos napoleónicos sobre as manhas e práticas da resistência portuguesa; etc. Nada a opor a isso a não ser o tempo e a capacidade de absorção dos alunos. O programa de História duplicaria de tamanho e o respectivo manual triplicaria de grossura.

E não poderíamos, também, ficar apenas pela exposição das violências levadas a cabo pelos colonizadores, teríamos de expor muita da violência de que a história humana é feita. Pois, por muito que isso possa surpreender Carmo Afonso, as histórias dos outros povos têm tanta ou mais “subjugação, escravidão e sangue”, e tão pouca ou ainda menos “cultura e ternura”, do que a portuguesa. Os manuais escolares encher-se-iam, assim, de referências a violações, torturas, execuções. Seria isso adequado para crianças? Certamente que não. Eu suponho, aliás, que estes critérios de adequação e de razoabilidade sejam igualmente seguidos pelos governos das nossas antigas colónias e nos outros países que emergiram da era colonial. Não será assim na História que em Moçambique se ensina aos alunos? Fará sentido esperar que, em Luanda, o governo do país determine que passem a ser mostradas/ensinadas às crianças angolanas as matanças de brancos de 1961? Ou que, na União Indiana, se venha a ensinar às crianças que durante a Revolta dos Cipaios (1857) os indianos chegaram a crucificar mulheres inglesas? Será imprescindível ensinar coisas dessas no ensino básico? E imprescindível para quem? Para os alunos ou para os activistas?

Não há que mexer substancialmente nos manuais que — falo apenas pelos que conheço e sobre os quais escrevi — me parecem equilibrados e ajustados ao nosso país, ao ensino da sua história e às nossas populações escolares. Nada disto significa que, perante cada turma concreta, o professor não possa ou, até, não deva, dar mais relevo a certos assuntos, se assim o entender. Qualquer professor ou professora é livre de explicar aos seus alunos determinadas facetas negativas do império colonial português. Mas tal como há diferença entre omitir e ocultar, também a há entre referir e inverter. Os/as professores/as e os manuais não devem inverter aquele que tem sido o seu foco. Estão a ensinar História de Portugal, não a História woke de Portugal. Mais factos? Venham eles, desde que caibam no tempo lectivo, que não sirvam para apagar outros tão ou mais importantes e que não tenham sido seleccionados e manipulados por Carmo Afonso. História, sim; uma disciplina de contra-história, não.