Querido filho. Estou a olhar para ti, a dormir serenamente ao meu lado, no dia em que completas dois meses, e pergunto-me como te vou um dia explicar o ano em que nasceste.

Descobri que estava grávida em Janeiro, ainda a Covid-19 era uma realidade incipiente do outro lado do mundo. Eu e o teu pai ficámos tão felizes quando ouvimos o teu coraçãozinho bater na primeira consulta. Esperámos umas semanas, mas não aguentámos muito tempo antes de contar aos teus avós a novidade de que a nossa família ia crescer no final de Setembro.

Entretanto, a Covid-19 atravessou continentes e bateu-nos à porta. A situação escalou de tal modo, que no dia 11 de Março, a Organização Mundial de Saúde caracterizou a Covid-19 como uma pandemia mundial. O dia seguinte foi o último em que ainda fui trabalhar para o escritório. A partir do dia 13, tanto eu como o teu pai passámos a trabalhar remotamente.

O entusiasmo e nervosismo para a primeira ecografia era muito, mas esta nova realidade trouxe restrições e o teu pai não pôde estar comigo. Não pôde saber em primeira mão que estava tudo bem, ver-te já tão crescido e a mexer no ecrã e descobrir que, muito provavelmente, serias um rapaz.

Depois da ecografia queríamos partilhar com os nossos amigos a boa novidade. Mas já todo o país estava confinado nas suas casas, logo, o WhatsApp teve de servir.

Nos próximos meses mal saímos de casa, exceto para ir pôr o lixo à rua. As grávidas não foram consideradas grupo de risco, mas ninguém tinha (nem tem) a certeza dos possíveis impactos que o vírus poderia trazer. Assim, a máscara e o álcool gel tornaram-se ferramentas essenciais para enfrentar o mundo. E no conforto de nossa casa, tu foste crescendo, um bebé ativo e saltitão numa barriga “secreta” que ninguém via nas infindáveis reuniões virtuais.

PUB • CONTINUE A LER A SEGUIR

Quando os teus avós me viram depois do confinamento, já a minha barriga era inquestionável e os teus pontapés e cotoveladas frequentes. Apesar de termos desconfinado no início do verão, as nossas consultas continuaram restritas ao teu pai e nem tínhamos certeza de que ele poderia estar no teu nascimento.

O teu quarto e o teu enxoval foram preparados com muito amor e carinho e com a ajuda da internet, viva o e-commerce! O berço, o carrinho, todas as tuas roupinhas chegaram a nossa casa por correio, de tal modo que o senhor dos CTT se tornou num conhecido. E apesar de ter sentido muita falta da experiência de ir com a tua tia e com a tua avó às compras dos teus minibodies e babygrows, acabei por fazer um esforço em comprar tudo de marcas pequenas, portuguesas ou com produção em Portugal, ou em plataformas de roupa em segunda mão.

O teu nascimento foi-se aproximando e com ele também o outono e a tentativa de regresso à normalidade das escolas e das empresas. Mas rapidamente o número de casos aumentou e o medo obrigou a maior cuidado nestes metros finais da maratona. No dia em que as contrações começaram, não conseguia deixar de pensar no teste de Covid-19, que tanto eu como o teu pai teríamos de fazer para garantir que ele poderia estar presente durante o parto e não quis esperar demasiado tempo para ir para o hospital. Como se uma grávida precisasse de mais preocupações no momento do trabalho de parto!

Mas tudo correu bem e o teu pai esteve comigo em todos os momentos do teu nascimento. Naturalmente, com o contexto atual, não pudemos ter visitas no hospital, o que, confesso, até gostei, podermos ficar numa bolha de amor, apenas os três, durante uns dias. Quando viemos para nossa casa, a família veio visitar, mas com algumas regras. Vieram uns de cada vez. Não viste a cara dos teus avós e tios nem tiveste beijinhos, porque tinham uma máscara para te proteger. A tua avó e a tua tia são médicas, tiveram ainda mais cuidados. Quando os nossos amigos começaram a vir conhecer-te, muitos tiveram receio em pegar-te, ou pediram para nos encontrarmos ao ar livre. Outros, preferiram adiar para tempos mais seguros.

A nossa família não pode deixar de questionar como será o teu primeiro Natal. Será que vamos conseguir estar todos juntos? A incerteza sobre as próximas semanas ainda é muita e nós continuamos a fazer o nosso papel e a cumprir as regras impostas, o que significa menos visitas e menos passeios.

Quando penso no final da minha licença de maternidade, daqui a uns meses, questiono como estará o mundo. Será que teremos mais ou menos casos por dia do que agora? Será que vou, finalmente, regressar a um escritório ou ficar em teletrabalho? Será que as prometidas vacinas já começam a surgir?

Sei que não te vais lembrar de nada disto, mas um dia vou ler-te esta carta enquanto te mostro as fotografias dos teus primeiros tempos. Para a maior parte do mundo, 2020 será recordado como um ano surreal e assustador, um ano solitário, de uma pandemia global ainda por controlar. Para mim, será sempre o ano em que me tornei tua mãe, no meio de uma pandemia que criou tantas restrições, mas em nada mudou o nosso amor por ti.

Inês Relvas tem 31 anos e é Head of Strategy na Sonae Financial Services. Anteriormente, trabalhou cerca de oito anos na Boston Consulting Group. Tem experiência nas indústrias de serviços financeiros, bens industriais e retalho em Lisboa, Madrid, Londres e Luanda. Juntou-se ao Global Shapers Lisbon Hub em 2014.

O Observador associa-se ao Global Shapers Lisbon, comunidade do Fórum Económico Mundial, para, semanalmente, discutir um tópico relevante da política nacional visto pelos olhos de um destes jovens líderes da sociedade portuguesa. O artigo representa a opinião pessoal do autor, enquadrada nos valores da Comunidade dos Global Shapers, ainda que de forma não vinculativa.