Parece um caos, mas não é. Parece uma guerra, mas não é. Tão pouco se aproxima da visão apocalíptica, pois o “Reino de Deus não vem de maneira ostensiva… está entre vós” (Lc 17, 20). Para muitos, a Igreja parece mergulhada numa espécie de esquizofrenia e, no entanto, é a realidade mais transparente e lúcida no actual drama existencial da Humanidade. A mudança de época, na qual todos estamos envolvidos, exige de cada um de nós uma redobrada clarividência mental. Sobretudo, a capacidade para compreender melhor o que é a Igreja Católica e o modo como o Papa está a arrumar esta Casa comum, que, desde a sua fundação, em Jesus Cristo, tem um carácter universal. Centramo-nos num caso particular desta mesma Igreja.
A primeira semana de outubro é muito grata à prelatura do Opus Dei, que celebra duas datas chave: a fundação do movimento laical e a canonização do fundador. A decisão do Papa Francisco de colocar as prelaturas pessoais no seu devido lugar, permite dirigir a atenção para o horizonte do Ano Santo de 2025, que é a meta para a qual está a convergir toda a Igreja preparando-se, ao longo de dois anos, através do Sínodo sobre a Sinodalidade. Ou seja, os cristãos preparam-se para questionar a sua identidade à luz do primeiro Concílio ecuménico da história da Igreja, o I de Niceia, realizado no ano 325. Para assinalar este evento, a Santa Sé propôs a publicação de fascículos com as quatro importantes constituições do Concílio Vaticano II, pilares da actual Reforma e em continuidade com o I de Niceia: Lumen Gentium (a realidade da Igreja); Gaudium et Spes (a Igreja no mundo contemporâneo); Sacrosanctum Concilium (a Sagrada Liturgia na Vida da Igreja) e Dei Verbum (a Divina Revelação). Assinalar Niceia com um Sínodo e um Jubileu significa, para Francisco, dilatar a Igreja impedindo que ela fique encerrada nas diversas comunidades cristãs, que, de certo modo, a têm privado da sua verdadeira identidade e missão. O mote sinodal e jubilar é a Igreja em saída que se dilata para as periferias existenciais. O Papa entende, tal como os seus antecessores, que a Igreja é uma realidade histórica e dinâmica: “É a nova vida em Cristo, doada no dia do Baptismo, que é a verdadeira criação, no sentido de que a existência do ser humano é ontologicamente transformada e inserida num novo ser histórico que é a Igreja” (homilia, 4 de outubro de 2013). Ou seja, cada baptizado, configurado a Jesus Cristo e inserido na respectiva existência quotidiana, dá corpo e visibilidade ontológica à Igreja: fundamenta-a! Porque esta é “um corpo vivo, que caminha e age na história” (idem). Está, portanto, em construção. A Igreja não é uma instituição religiosa, exterior a cada um, para a qual todos devem convergir, ela é a nova criação emergente no que resta do mundo antigo. Se a redenção de Jesus Cristo englobou a Humanidade inteira, todos estão chamados a viver a experiência do sacerdócio universal, a santidade, no realismo do mundo novo. O I concílio de Nicéia e o Vaticano II tinha isto muito claro. Para tornar visível o verdadeiro rosto da Igreja, Francisco tem-lhe retirado o peso institucional-estático, que não permite avançar na realidade dinâmica que caracteriza o mundo de hoje.
Porquê descentralizar de si mesmas as diversas comunidades cristãs? Para as chamar à realidade e desfazer a ilusão em que muitas mergulharam de se considerarem o modelo acabado da Igreja, por excelência; ou seja, seguindo um caminho ideológico e fechado. Motivo pelo qual tantos organismos, outrora florescentes, perderam vocações e sucumbiram ao mundanismo. A Prelatura da Santa Cruz e Opus Dei estava a derrapar neste plano de realidade ideológica, a de filhos privilegiados de Deus, num núcleo restrito de pessoas. À margem estariam todos aqueles com menor capacidade de existir como Igreja. A nova configuração que o Papa Francisco está a exigir ao Opus Dei – sem o peso hierárquico – é pautada pelo carisma de origem, que o sacerdote Josemaria Escrivá implementou, à luz das primeiras comunidades cristãs e, consequentemente, em defesa da visão ecuménica dos primeiros concílios da era cristã. Basta ler as suas primeiras homilias para o compreendermos. Ao recusar um estigma religioso, Escrivá tinha plena consciência de que a Igreja se edificava através do agir de cada cristão, onde quer que se encontrassem geograficamente.
Mas, qual é a forma deste ecumenismo tão salutar para a edificação da Igreja? Aquela que o Papa João Paulo II indicou na Carta Apostólica A Luz do Oriente e, também, a que Bento XVI propôs no encontro com o mundo da cultura, em Paris, em 2008: a importância da tradição espiritual monástica e a simplificação das múltiplas teologias sobre o episcopado, o clero, os religiosos e o laicado. Ou seja, todos os baptizados têm que viver plenamente o Evangelho, sem paliativos quanto à sua exigência. O sacerdote Josemaria Escrivá sempre afirmou isto. Por isso, dizia constantemente que não se considerava fundador de nada – era Obra de Deus – apenas lembrava às cúpulas da Hierarquia da Igreja o entrave que punham ao realismo histórico e dinâmico da condição laical, na vivência da fé cristã. Não há, portanto, qualquer conflito entre a actual modificação do contexto das prelaturas pessoais e o carisma fundacional do Opus Dei. A configuração anterior estava a ser um obstáculo ao crescimento da própria espiritualidade. Nem há conflito algum naquilo que as periferias existenciais exigem à Igreja ao quererem integrar-se plenamente na nova criação. A forma como isto se realiza, na passagem da dimensão antropológica para a dimensão ontológica, é da responsabilidade de cada cristão: “Quem se deixa olhar por Jesus crucificado fica recriado, torna-se uma nova criatura” (idem). É isto que o Sínodo vai debater durante dois anos com a colaboração de todos. É esta tomada de consciência que o Papa pede à Prelatura.