O recurso sistemático às cativações…

A política de utilização das cativações não é de agora. Têm sido nos últimos largos anos uma das principais armas dos Governos para conter a despesa de consumo público. Hoje são foco de polémica dada a sua aparente importância na “conquista” de um défice “histórico” em 2016, por terem permitido fazer “cortes” subreptícios. Contudo, ainda há pouco tempo, a polémica era ao contrário: problema era o de os Governos “abusarem” das “almofadas de segurança” para “pagar salários” ou “dívidas”.

A legalidade das cativações não é discutível, nem a sua legitimidade política, tendo sido aprovadas pelo Parlamento. E não reduzem, por si, na fase de discussão e aprovação do Orçamento, a despesa prevista. Os montantes já estão considerados nas metas orçamentais e, nessa altura, contam como despesas aprovadas. São “apenas” retenções de verbas do orçamento de despesa, que acabam, se não “descativadas”, por funcionar como um bónus para a execução orçamental.

O que é discutível é o modo como têm sido profusamente utilizadas, por duas razões: i) reduzem a transparência e responsabilidade política da despesa pública, e ii) permitem controlar a execução, sim, mas da forma errada, com uma gestão porventura arbitrária do Ministério das Finanças, substituindo melhorias necessárias na gestão das finanças e dos serviços públicos.

… reduz a transparência e a responsabilidade política…

A utilização excessiva das cativações distorce a perceção das “poupanças” alcançadas na aquisição de bens e serviços em 2016 – e provavelmente em 2017 – e levanta questões de transparência e responsabilidade política. As cativações, utilizadas como têm sido, podem acabar por impor fortes restrições à aquisição de bens e serviços e ao investimento, especialmente no fim do ano, quando os fundos não cativados se esgotam.

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Como tem sido comunicada esta política de utilização das cativações de montante avultado e consideravelmente superior a anos passados? Por motivos politicamente óbvios, não tem sido comunicada de todo.

Em 2016, o Governo assumia que pretendia manter cativos 445 milhões de euros. No final, o montante ascendeu a 943 milhões: apenas 46% das verbas totais cativadas foram postas à disposição. Para este ano, o Governo pretende cativar o mesmo montante: 1.500 milhões de euros. Mas quanto será efetivamente no final? Não se sabe. E em que ministérios e organismos está previsto? Também não se sabe. Esta falta de transparência e incerteza prejudica o escrutínio público e político.

Mas mais produtivo do que perceber quem “está a dar cabo dos serviços públicos”, é compreender que toda esta especulação é possível pelo facto de a informação não-financeira sobre a atividade e desempenho dos serviços públicos ser ainda, salvo raras exceções (e.g. Hospitais), altamente incipiente. Melhorá-la deveria ser uma prioridade transversal aos vários quadrantes políticos.

Segundo o ministro Mário Centeno, esta é uma política totalmente transparente. Até pode ser verdade, mas só quando sai a Conta Geral do Estado, ou seja, um ano e meio depois do início do exercício económico em causa. É demasiado tarde: seria importante saber, ao longo do ano, quais os montantes já descativados, bem como os pedidos de descativação aprovados, rejeitados e em análise, por organismo, programa e Ministério, por forma a ser possível uma avaliação de quais os setores e serviços que mais foram afetados. E, mais importante, que se informe – e se assuma – os montantes que se tornaram cortes face ao orçamentado.

… e não é uma ferramenta de boa gestão das finanças públicas

Contudo, na verdade, a transparência das cativações não deveria ser um problema importante. O enfoque não deve estar em “melhorar” o recurso às cativações. Deve, sim, estar em eliminá-las do dia-a-dia da gestão orçamental. Não faz sentido haver uma parte substancial dos orçamentos setoriais deixada de fora da negociação política, primeiro entre os membros do Governo e, depois, no Parlamento. Não faz sentido essa parte ser “gerida” pelo ministro das Finanças, desresponsabilizando os gestores públicos.

É evidente que devem existir “almofadas financeiras” (atualmente reserva orçamental e dotações provisionais), caso se verifiquem imprevistos e desvios face aos orçamentos estabelecidos, ou seja, para fazer face a “rainy days”: situações excecionais e de emergência, em que os serviços possam ter acesso a fundos suplementares sem que se tenha de proceder a alterações orçamentais ou mesmo à aprovação de um orçamento retificativo.

Não é justificável, no entanto, a cativação de uma parte importante das despesas não-salariais dos organismos públicos. Assim, as cativações deixam de servir o seu propósito para passar a ser uma coleira, sendo dada mais ou menos “trela” à administração pública em função do bom andamento da execução na receita. Se os organismos não cumprirem os orçamentos que lhes foram estipulados, tem de haver consequências e responsabilização atribuída a cada gestor público.

Se os montantes disponíveis forem, logo à partida, considerados como insuficientes, não é possível avaliar o desempenho dos organismos públicos. Se já se sabe que as cativações não são para levar a sério, como saber se os valores tiveram de ser descativados por má gestão, por suborçamentação das despesas, ou por necessidades supervenientes reais? Com este regime, nem os próprios serviços conseguem fazer uma gestão adequada da totalidade dos fundos que têm à sua disposição, porque na prática não têm todos os fundos previstos disponíveis – e não sabem se virão sequer a tê-los.

A justificação da necessidade de utilização dos fundos atribuídos deverá ser feita a priori, logo aquando da elaboração do Orçamento, e não constantemente ao longo do ano. Tal como no caso das reservas orçamentais, a definição de dotação provisional é “uma provisão para fazer face a despesas não previstas e inadiáveis” (CFP) – ou seja, não se pode considerar normal o pagamento de despesas com o pessoal ou outras de carácter previsível a partir desta rubrica.

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A “nova” Lei de Enquadramento Orçamental (LEO), aprovada em 2015, preconiza um conjunto de reformas que darão mais ferramentas para controlar a execução orçamental, mas da forma adequada, descentralizando e responsabilizando. Algumas, como a dos programas orçamentais, ou o novo modelo de gestão de tesouraria, deverão eliminar a necessidade do recurso sistemático às cativações, que têm funcionado como uma ferramenta de não-gestão orçamental. Trata-se de alterações complexas, que envolvem uma verdadeira mudança de paradigma na gestão das finanças públicas.

Parece que este Governo, a bem dos objetivos orçamentais, tem sido o maior pecador cativador. Se permitir a implementação bem-sucedida da LEO, pode ser também responsável pela redenção, libertando o processo orçamental das cativações.

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Investigadores do Institute of Public Policy (IPP). As opiniões aqui expressas vinculam somente os autores e não refletem necessariamente as posições do IPP, da Universidade de Lisboa, ou de qualquer outra instituição a que quer os autores, quer o IPP estejam associados.