Na sua obra, 12 Rules for Life: An Antidote to Chaos, o polémico psicólogo Jordan Peterson faz referência ao conceito de “cegueira voluntária”, definindo-a como a recusa em saber algo que pode ser conhecido. É, a seu ver, a denegação em constatar que há, v.g., “um enorme gorila na sala, um elefante debaixo do tapete, um esqueleto no armário. É a recusa em admitir erros enquanto seguimos com um determinado plano”. É, no fundo, a recusa em ver ou tentar perceber aquilo que basicamente está debaixo do nosso nariz. Tal pode acontecer por questões de auto-estima, de impotência em ter de assumir o ónus da solução, porque vivemos mal com o fardo das responsabilidades ou com os dilemas éticos e morais que a confrontação com os factos nos inspira. Peterson levou na sua obra de 2018 mais longe, a mais pessoas, e de uma forma mais apelativa uma construção jurisprudencial enraizada no direito anglo-saxónico, conhecida como “teoria da cegueira deliberada”, ou “ostrich instruction”, que ganhou tração após o caso United States v. Jewell que, em traços largos, preconiza a possibilidade de punição do indivíduo que deliberadamente se mantém em estado de ignorância em relação à natureza ilícita de seus atos, na ânsia de, por essa via, poder ser considerado não imputável no plano criminal.
O caso remonta aos anos 70, e diz respeito a um cidadão, de seu nome Jewell, que tendo sido abordado num bar no norte do México (perto dos Estados Unidos) com uma oferta de droga (que recusou), terá de seguida aceite conduzir um carro para lá da fronteira em troca de 100 dólares. O carro foi mandado parar na alfândega tendo sido encontrada num compartimento que Jewell notou, mas não inspecionou, uma quantidade não negligenciável de droga. À época, para ser considerado culpado, a lei norte-americana exigia que Jewell soubesse que havia droga no carro. Num primeiro momento, o tribunal de primeira instância considerou que o ónus da prova recaia sobre a acusação das autoridades públicas, que teriam de demonstrar que o réu estava mesmo ciente, quando optou por ignorar o que poderia estar no dito recipiente, da probabilidade elevada de aí haver droga, sendo tal ignorância um propósito consciente. Já na decisão de recurso, o tribunal foi mais longe, defendendo que “a ignorância deliberada e o conhecimento positivo são igualmente culpáveis”, sendo perfeitamente legítimo concluir, em certas circunstâncias, que alguém tem efetivo conhecimento de fatos dos quais não tem certezas completas, agindo conscientemente para não ter de os conhecer em concreto. Assim, uma atuação consciente, no sentido de não conhecer aquilo que com elevada probabilidade está a acontecer, pode ser assumido como conhecimento de um determinado facto ou conjunto de factos.
Este caso acabou por tornar mainstream uma construção jurisprudencial que havia já sido ensaiada, sem grande impacto, no século XIX, desde logo numa decisão da Corte de Inglaterra de 1861 (que defendeu que caso o réu possuísse condições para saber que estaria a participar numa atividade ilícita, optando por “fechar os olhos à descoberta”, seria tão culpável quanto se possuísse o conhecimento pleno) e, mais tarde, em 1899, quando o Supreme Court dos Estados Unidos reconheceu a teoria e lançou mão da nomenclatura willful blindness no caso Spurr v. United States.
Por estes dias Portugal vive um clima de willful blindness com contornos clínicos e que merece reflexão. Às primeiras chuvas da época, o país que rapidamente esqueceu Pedrógão e que há uns meses sofria com os dramas de uma seca que é real e preocupante, acordou – mais uma vez – com várias cidades inundadas e alagadas, desde o Algarve a Lisboa, deixando as populações à sua própria mercê, com uma enorme sensação de impotência e ausência de proteção por parte dos poderes públicos. O caos nas ruas seguiu-se ao tradicional caos nas urgências, e a inúmeros outros caos em relação aos quais não se sente indignação, revolta ou frustração, tamanho o sentimento de derrota e impotência – ou, quiçá, indiferença. Não tardaram explicações sobre o ocorrido, com um desfile de especialistas a clarificar que estamos – já não perante as explicações bíblicas do Dilúvio como expressão da fúria divina, mas – perante fenómenos extremos resultantes das alterações climáticas. No canal público de televisão (link não disponível), foi possível ouvir que, e cita-se, “os cientistas não têm dúvidas em referir as alterações climáticas como causa principal da intensa precipitação que causou inundações em Lisboa e no Algarve”.
Cada um acredita no que quiser, e escolhe as suas irritações, mas o facto de não nos indignarmos ou continuarmos a fingir que nada acontece, culpando a ira da natureza por negligências grosseiras de quem gere há décadas o espaço público não nos torna, enquanto cidadãos, menos responsáveis.
Ora, numa semana em que o país continuou adiado nas urgências e se viu alagado de norte a sul, é curioso ver como as indignações coletivas são encaminhadas para a seleção nacional e para o seu treinador. Eis que a seleção portuguesa foi eliminada, e o adormecimento popular agitou-se. Há muito tempo que não via uma causa cívica que unisse tantos portugueses no seu protesto como a eliminação de Portugal no Mundial do Catar.
Gosto muito de futebol e das paixões que desperta, mas não vejo razão para tanto drama à volta das desventuras da seleção. É particularmente irónico que seja uma seleção no setor mais competente que o país tem produzido a despertar a ira de tantos. É que temos ao longo dos anos no futebol um nível de profissionalismo – e resultados – sem paralelo em nenhuma área, da economia, à cultura, à ciência ou ao desporto. É verdade que Portugal faz bem em muitas áreas, na arquitetura, na engenharia, no turismo, no têxtil e no calçado, na cortiça, no vinho. Mas é na supercompetitiva e darwinista indústria do futebol que atingimos uma consistência que nos distingue. Como adepto agradeço as alegrias e as tristezas que me são oferecidas (porque já não consigo chutar numa bola) por todos os que, melhor ou pior, ano após ano nos relvados deste mundo têm de carregar a responsabilidade de branquear todas as nossas incompetências e falhanços. O grupo de futebolistas e técnicos que mandamos para o Catar têm um nível de profissionalismo e de compromisso com as suas responsabilidades que não tem paralelo com o que encontramos em todos os que fazem deles o bode expiatório de um país empatado, derrotado, ironicamente, os únicos a quem pedimos contas e escrutínio. Fôssemos tão exigentes com quem devíamos (incluindo nós próprios) como somos com os homens da bola, e seguramente seríamos um país muito melhor.