O relatório da Comissão Europeia Para a Eficiência da Justiça (CEPEJ) do Conselho da Europa publicado no passado dia 5 de Outubro dá conta de que o tempo de resolução de processos penais em primeira instância em Portugal é avantajado – 280 dias em média – e de que continuamos a estar sobrecarregados com a maior percentagem de casos com mais de dois anos de existência. Porque a celeridade e a prontidão (entendidas em termos hábeis, não coincidentes com o significado que têm no mundo mediático) são factores importantes da confiança dos cidadãos na Justiça, é importante que melhoremos este estado de coisas.

De entre as várias soluções possíveis, ouso avançar com duas. Uma será a criteriosa modificação do perfil actual da fase de instrução, por forma a que deixe de ser mero expediente dilatório e factor de empastelamento processual. Que deixe, em suma, de ser uma espécie de pré-julgamento, ociosa repetição de actos do inquérito.  Objectivo que poderá alcançar-se, por exemplo, reduzindo-a tendencialmente ao debate instrutório e só admitindo a prestação de provas que o Ministério Público tenha denegado à defesa na fase de inquérito. E isso, a meu ver, não carece sequer de intervenção legislativa: bastará uma interpretação que melhor se adeque ao real sentido e finalidade das normas vigentes. Importa, além disso, que se intensifique o escrutínio judicial sobre o cumprimento das regras que vieram recentemente acentuar os limites à formação de megaprocessos: oficiosamente o juiz de instrução ou o juiz de julgamento deve fazer cessar a conexão e ordenar a separação de processos sempre que se verifiquem as circunstâncias plasmadas na lei. É que esta moda da construção de processos gigantescos, que se instalou nas últimas décadas, podendo parecer útil na fase de investigação acaba por gerar graves disfunções nas fases subsequentes, já que as arrasta desmesuradamente e se torna assim sério motivo do descrédito na acção da Justiça. Que efeito pode surtir uma pena definitivamente aplicada vinte e cinco anos depois da prática dos factos?

A outra solução será a adopção de um equilibrado regime de acordos sentenciais. Quase todos os países do nosso entorno civilizacional a perfilham como uma inevitabilidade para fazer face à litigância galopante das sociedades actuais. Os Ministros dos lander alemães já em 2004 alertavam que “a justiça penal trabalha nas margens da sua capacidade de resistência”. Por isso a jurisprudência vinha praticando e elaborando um regime de acordos sobre a sentença (“absprachen”) desde a década de 80, sem apoio em lei expressa e até sob intensa crítica da doutrina, só tendo sido alcançada em 2009 a sua consagração legal. Em Portugal também alguns jovens procuradores, com o apoio e incentivo de alguma hierarquia, alguns juízes mais esclarecidos e ousados e advogados mais abertos e informados encetaram, no início da década passada, experiências de mudança nesse sentido, vindo a produzir-se, em certas zonas do país, acordos sobre a sentença, sobretudo em matérias de baixa e média densidade criminal. O tempo e a despesa que se poupou com tais acordos! E nem era exigido aos aplicadores a intrepidez dos magistrados alemães, pois o artigo 344º do Código de Processo Penal constituía já base legal suficiente para esse caminho. Mas, por fatalidade, não continha toda a panóplia normativa, toda a hiper regulamentação em que o nosso sistema se viciou e, por isso, na subida de um recurso ao STJ para decisão de determinada questão conexa, que não, sublinha-se, o tema da validade dos acordos, que ninguém pusera em causa, esse alto Tribunal fulminou a prática nascente com o labéu da ilegalidade, pretextando não estarem contemplados na nossa lei processual. Na linha, afinal, do positivismo radical que se tornou característica notória do sistema e causa relevante do seu entorpecimento.

Com base nessa decisão a então Procuradora Geral da República, destoando do brilhantismo geral que caracterizou o seu mandato, emitiu a Directiva 2/2014, determinando que os magistrados e agentes do Ministério Público se abstivessem de promover ou aceitar a celebração de acordos sobre sentenças penais. A prática cessou, por isso.

Anos volvidos Francisca van Dunem, Ministra da Justiça que fora, comigo, enquanto hierarca do Ministério Público, adepta e difusora dessa solução, inspirou proposta de alteração legislativa que saciasse a sede normativizadora reinante e abrigasse minuciosamente no Código de Processo Penal todos os passos dos acordos sobre a sentença. A iniciativa sucumbiu na barganha parlamentar, talvez porque fosse embrulhada num vasto pacote de leis anticorrupção, e aqui estamos, sem lei satisfatória, sem autorização para ousar na prática judiciária e, o que mais temo, talvez sem vontade de o voltar a fazer.

Contudo, esperançado em que reste ainda um módico de energia, de vontade de inovar e de alcançar resultados que melhor respondam aos anseios da comunidade (pressupondo que esteja interessada em Justiça mais célere, mais consensual e menos dispendiosa), aqui deixo um respeitoso pedido: Senhora Procuradora Geral da República, revogue a Directiva 2/2014.  Pode ser que renasça o ímpeto de há uma década e que, por via jurisprudencial, procuradores, juízes e advogados menos conformistas, a partir do artigo 344º do CPP, vão cunhando na prática o modelo português de acordos sobre a sentença e contribuam decisivamente para a celeridade processual e o alívio do sistema. Mais tarde o legislador render-se-á à força da realidade e dará detalhada consagração a todos os passos do procedimento. Pois se até os alemães demoraram mais de vinte anos a fazê-lo!

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