1 O Natal antes do seu tempo. Tenho a noção de o ter visto logo na passagem de Setembro para Outubro, ainda o ar ia quente e andava-se de sandálias. Faltam vinte e um dias e a (má) amostra já cansa. Por este andar um dia saltaremos da praia para o presépio ou melhor, para o centro comercial, o presépio caiu em desuso. As instituições públicas, quer no seu interior quer no exterior dos seus edifícios, vetam-no (cada um sabe de si) mas espanta, noutros lugares e espaços — e não falo obviamente das igrejas – a muda ausência, nesta época, de um dos maiores símbolos da civilização ocidental. O Natal impresso hoje nas cidades portuguesas é excitadamente festivo e inteiramente material, anúncios, promoções, brindes e descontos projectados como bólides sobre os nossos écrans e telemóveis: pratique-se a ganância, lucro precisa-se, o negócio tem de rolar (mesmo que disfarçado de “solidariedade”).

É o Natal que se “vê”. Sem que aparentemente haja um mínimo de recuo do frenesim que estes dias institucionalizaram, uma pausa no rodopio, a necessidade de um “presépio interior” que empreste algum sentido à festa.

Na aceleração vigente “em que lares aconchegados é que um sentimento conserva os sentimentos passados”? (como gostava de dizer o poeta e eu também gosto) Para não falar desta espécie de indiferença geral face à mensagem da herança judaica-cristã ou — mas seria certamente pedir muito — do esquecimento ou recusa a uma pertença civilizacional com obrigações.

Mas pode ser que eu esteja a ver mal.

2 Mais perto ou mais longe, escondidos, vistos ou entrevistos, nessas margens onde não chegam brindes, nem fios, nem luzes, há os outros Natais. Ou melhor, os não Natais. Solitários, desprovidos, indefesos. Entregues a sua má sorte.

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Conheço alguém que apesar de agnóstico considera que “a religião é o mais importante cimento espiritual que congrega uma comunidade humana”. Não preciso de invocar motivos religiosos nem é neles que penso ao escrever estas linhas. Basta apenas pensar — para quem acredite que o Natal é maior que os seus enfeites — que o pior que pode acontecer é enganarmo-nos de “próximo”.

3 O que não estarei certamente a ver mal são os nefastos efeitos que acarretaria a regionalização. Todos dramáticos – e sim, sejamos dramáticos com as palavras, esta ressuscitada ameaça reclama-o. Por alguma razão de muito peso, o desastre regionalista foi recusado há vinte e um anos, pela mais transparente, eficaz e democrática das maneiras: pelo voto. Lembro-me de tudo, estive “lá”. Participando quanto pude no remar contra essa inflamada maré, com muita gente e ao serviço de um Movimento Anti-Regionalização criado por Ernâni Lopes. Tive a felicidade de o fazer ao lado de pessoas tão lúcidas quanto o saudosíssimo Vítor Cunha Rego que nunca brincava em serviço, para só citar um nome, nesta hora que se prevê de novo tão irresponsável quanto por isso mesmo perigosa: outra vez? Os partidos rachados ao meio, a sociedade portuguesa dividida, tensões e crispações dispensáveis num projecto que nada no país justifica mas em tudo o prejudicaria?

4 Também me lembro da importância daquela guerra. Foi uma guerra. Voltará a sê-lo se for preciso, há uma cidadania convicta e comprometida e grandes generais políticos não faltarão (soldados também não). Nunca se sabe, apesar da marcha atrás do Governo — ou de algo de muito parecido com um recuo. É que o Executivo não ignora um: que Belém, sendo contra esse fatal figurino, não favorecerá um referendo, que o mesmo é dizer que dificilmente o convocará; dois: que havendo pouco dinheiro, divisões politicas e pouca bênção do alto, mais vale não brincar com o fogo, os pesados problemas que aí estão e os já anunciados chegam para fazer transbordar qualquer agenda política. Isto dito falta o resto que é muito e pode ser ardiloso. Está aí, “oficializado”: uns chamam-lhe desconcentração, outros, descentralização, e até — já ouvi — desburocratização. Ou seja, trata-se de uma “operação” política de outro porte e natureza mas seja qual for o seu nome sobram más dúvidas: sobra tal a valsa das transferências de uns locais para outros, o nevoeiro das competências, a ascensão à decisão de não eleitos, a pressa em ir dotando cada passo da chancela da “irreversibilidade”. Mais e pior: à míngua de reformas — quais foram, em quatro anos? — não custa perceber como o PS gostaria de embrulhar a regionalização com laços, pompa e circunstância, oferecendo-a aos seus, disfarçada de “grande reforma” .

Tudo isto que faz um bocadinho de medo, recomenda atenção e munições: pelo sim pelo não, há que começar a travar a guerra, há muita coisa já a larvar, meia combinada, meia decidida, meio adiantada. Está-se a lidar com matéria perigosa. Além de que nem os tempos são os mesmos de há vinte anos, nem as lideranças, nem os partidos, nem os processos, nem o ar do tempo.

Tudo é mais frágil, a sociedade está mais indefesa, os partidos envelhecidos, a entrada em cena das redes redes sociais institucionalizou a mentira e “legitimou” a manipulação. E o envenenamento do espaço público pelo ressentimento, a fulanização e o insulto não ajudam a este clima insalubre.

Não, não exagero, penso simplesmente no país. Portugal não merece, não necessita e nunca melhoraria com um assalto chamado regionalização.

5 Sempre o digo — e não há motivos para parar de dizer: é preciso que as extremas-esquerdas se sintam “donas” da vida política e “mestras” em tratá-la como coisa sua, para que a mais extraordinária cena que os meus recentes quotidianos já testemunharam, possa ter ocorrido: uma deputada da Nação chamou a polícia para a defender dessa chatice que são os jornalistas. Posta em perigo de vida a sua “produção” intelectual pela natural curiosidade da media e a sua obrigação de dar noticia, fora com os importunos, venha a GNR. Para grandes males, grandes remédios. O dia seguinte conseguiu a formidável proeza de ser ainda pior, tão politicamente inaceitáveis foram as “explicações” e tão desgraçadas as justificações.

E no entanto, se muitos foram os que, atónitos ou chocados, reagiram, poucos foram os indignados.

(imagine-se Cecília Meireles, André Ventura ou Cotrim, a fazerem o mesmo). Sim, a coisa passou. Quase mansa, um fait-divers, um mero capricho, uma fraqueza emocional. Com invejável segurança a vida seguiu. E seguirá, enquanto se tolerar a existência de filhos e enteados no tratamento político. No fundo, tem-se o que se merece.

6 Dia histórico, este. O meu quotidiano deu de si com a surpresa: à hora a que escrevo, hoje, terça-feira, dia 3 de Dezembro, foi a primeira vez em quatro anos que o Presidente da República NÃO foi a um sítio. A ubiquidade teve uma trégua, o país também.