O pensamento que vou sistematizando é do campo da moral social, da cultura cívica, dos princípios gerais da ação política, do pensamento social ou coletivo. Essas preocupações deram corpo ao livro «Um século de escombros», publicação de 2019, coincidente com o nascimento do Chega. Via o seu líder, André Ventura, dar provas sucessivas de coragem e de uma intuição política raríssima, incisiva a apontar os males quotidianos que atingem os portugueses comuns.
Depressa deixei-me seduzir intelectualmente pelo fenómeno. Daí à minha filiação ao Chega, em 2020, foi um passo. Claro que o recém-chegado é que tem de se adaptar, não o inverso. Leonid Brejnev (esse mesmo) ajudava: «Não há nada mais prático do que uma boa teoria».
No contexto da implementação do Gabinete de Estudos, a primeira e principal preocupação foi a de conferir centralidade ao programa político do partido. Coordenei o seu reajustamento de modo a torná-lo estável no tempo com o propósito de consolidar a identidade coletiva («quem somos»), assim como daquele programa deveriam passar a derivar os sucessivos programas eleitorais («o que vamos fazer»), os últimos de natureza conjuntural.
Entre 20 e 30 de agosto de 2022, já como membro do grupo parlamentar, vivi dias de um tão exigente quanto gratificante choque entre a teoria e a prática, o meu ritual de iniciação política. Desde as mais remotas origens, a prática acontece no interior das identidades. Da individual à coletiva, é «dentro de casa» que se disputa a entrada na maturidade. Não apenas nos partidos políticos. Também nas famílias, escolas, igrejas, empresas, exércitos, associações, clubes desportivos, por aí adiante.
Quanto mais elevados os riscos dos rituais iniciáticos, maior o preço da entrada ou da saída de uma identidade ou instituição. Um dos piores riscos é a perda de um membro, um clássico desde tempos imemoriais.
À sua dimensão, no interior do partido Chega, disputam-se as causas das desgraças impostas aos portugueses pelo atual regime político: não se pode deixar corromper a distinção entre o essencial e o acessório, nem deixar fragilizar o ideal de instituição. Como outros, quando o presidente do partido, André Ventura, se refere a «dores do crescimento» resume o fundamental, dores que de nada servem se os próprios não compreenderem o que as justifica.
Começo pelo primeiro ponto, o dever de preservação da distinção entre o essencial e o acessório. Resisti num ponto chave: compete ao Chega e à sua militância provarem aos portugueses que possuem abertura democrática. Isso não existe se, a nível interno, não se integrarem diferentes sensibilidades, sendo que saber gerir ambivalências e divergências internas constitui prova irrefutável. Sem isso, nenhum indivíduo ou coletivo atinge a maturidade.
Sempre existiram e existirão diferentes sensibilidades sociais no Chega, mas isso não é relevante enquanto não se traduz em sensibilidades de pensamento distintas. Os últimos dias acabaram por ser de clarificação interna, tendo em conta que o programa político do partido é um chapéu de aba larga concebido para tornar a diversidade coerente, aceitável, vantajosa. Claro que está em causa uma identidade coletiva com personalidade própria, uma instituição, o oposto da sociedade, esta o espaço aberto a todos, sem restrições.
Pelo que é e representa, o Chega não pode ambicionar tudo ao mesmo tempo. Por um lado, ir integrando um maior pluralismo de pensamento interno – para transitar de um ciclo inicial em que teve de evitar o infanticídio à moda de Herodes pela rigidez da coesão interna – e, por outro lado, fragilizar a liderança pela sua permanente disputa interna endémica. É de uma profunda falta de lucidez não distinguir esses dois universos, considerando que na atualidade um anula radicalmente o outro. É a realidade que obriga a escolher.
Suponho não andar longe da verdade se concluir que a militância do Chega, na sua esmagadora maioria, soube demonstrar que não confunde o essencial com o acessório em momentos decisivos, atitude fundamental num partido político capaz de reformar Portugal. Extraordinariamente inteligente como é, na oportunidade que tive de conversar longamente com o presidente, André Ventura, cheguei a outra conclusão: o caminho de abertura interna do partido nunca esteve em causa, mas torna-se difícil por causa da turbulência gerada pelas tentativas constantes de descredibilização interna da liderança.
Daí a ligação ao segundo ponto, o do dever de preservar o ideal de instituição. É decisivo (re)criar, entre os portugueses, uma cultura cívica de senso comum capaz de distinguir a sociedade (o espaço aberto a todos) das suas instituições (espaços fechados para serem geridos a partir de dentro pelos membros de cada instituição). O atual regime vive do inverso. Daí a gravidade da fragilização das mais variadas instituições, e numa dimensão sem precedentes históricos: família, escola, saúde, justiça, universidade, segurança pública, empresas, tradições portuguesas, por aí adiante.
O partido Chega não pode ter o princípio da defesa das instituições como causa maior do seu programa político, mas depois não ser o primeiro a aplicá-lo a si mesmo. Não importa o tipo de questões que se joguem a nível interno, o que importa é que todos temos de aprender a resolvê-las dentro de portas.
O detalhe é o de não podermos ignorar que o Chega não teria a identidade de matriz popular que possui, fortemente incómoda para o regime, nem teria conquistado o que conquistou se não fossem as redes sociais. Paradoxal é que essa carga identitária originária se revelou, muito depressa, a maior inimiga da estabilidade interna e da institucionalização do partido, isto é, da sua viabilidade. Reverter o cenário é inevitável, e claro que podemos divergir nas estratégia e ritmo.
Não sendo o único, defendo que o antídoto mais eficaz será sempre o da autorresponsabilidade de cada militante. No caso, significa contenção do que coloca no espaço público.
Dos últimos dias, também resultou óbvio para mim que a contenção será sempre insuficiente num ambiente interno fortemente avesso a tal atitude. O cenário tem sido bastante desfavorável porque facilmente vira o partido para dentro de si mesmo, para a vida interna, uma grande vantagem para os adversários. A contenção é justamente o meio de virá-lo para fora de forma convicta e sustentável, como até agora não tem sido possível.
Uma última nota. O programa político impõe um rumo muito claro à identidade coletiva do Chega: ser de direita, conservador, reformista, liberal e nacionalista. Foi a própria militância que tornou essa a sua magna carta. Todavia, que ninguém duvide que um líder forte será a maior vantagem nessa caminhada, considerando que vivemos num contexto em que o regime é radicalmente hostil aos princípios políticos em causa, e sem eles Portugal não é reformável.
Daí ser também este o momento de colocar na agenda interna outro desafio. Ao líder fundador de uma identidade coletiva, para mais popular, compete esvaziar as retaliações do complexo de Édipo das quais ele mesmo é alvo. Isso está eternamente presente, de forma manifesta ou latente. Desse modo, no Chega quem tentar destronar a liderança deve saber que atenta contra o «pai» fundador, atitude que representa muitíssimo mais do que a mera ambição de substituição do líder. É um ato de parricídio, da morte simbólica do pai, o que nunca pacifica uma identidade coletiva. Antes pode destruí-la se ainda não tiver raízes sólidas.
Freud explica, e muitíssimo bem, em «Totem e Tabu» (1912-1913), reflexão atemporal sobre identidades coletivas. Quem a conhece, assim como o partido por dentro, ficará com a impressão de Freud ter escrito o livro após militar no Chega.
Ser do Chega é não escapar a ter de assumir a pertença a uma identidade coletiva que nasceu e vive radicalmente dependente da expressão «Estou com o André!». Sendo essa a melhor semente da força originária da identidade, paradoxalmente só ganhará raízes profundas a partir do momento em que o seu referente agregador transitar de um indivíduo concreto (o «Pai André») para um valor abstrato e universal cuja carga humana e civilizacional possa ser reconhecida, não apenas por cada membro da instituição, mas ao mesmo tempo por quem a olha de fora, pela sociedade no seu conjunto, que respeita o que lhe provoca ambivalência. Essa regra é incontornável nas sociedades atuais.
Porque esse passo será inevitável, desde que entrei no Chega, tento suavemente ultrapassar o desafio edipiano do partido. Bato-me pela «autorresponsabilidade» enquanto referente agregador supremo da identidade coletiva, por isso ela abre o programa político do Chega. Não existe alternativa a termos de compensar o «Partido do André» por um valor abstrato e universal, sendo que serei o último dos militantes a sequer insinuar qualquer desejo de enfraquecimento da liderança fundadora, a de André Ventura. As razões são óbvias.
O detalhe é o do próprio líder ir instigando a transição da centralidade da identidade coletiva dele mesmo para um valor agregador abstrato e universal. Ou pelo menos permitir que, no partido, outros o façam. Esse é o processo de esvaziamento da carga destrutiva do complexo de Édipo, que permite a um líder fundador proteger-se a si mesmo. Está em causa, inclusive, a condição sine qua non do impulso decisivo da abertura do Chega à sociedade, a antecâmara da transição de um pequeno partido político para um partido médio ou dominante.
Na matéria, as sociedades são como relógios suíços. Freud e Serge Moscovici sabiam o que escreviam.
Independentemente das crenças religiosas de cada um, Jesus Cristo remeteu sempre para um Deus que estava e está (para os que creem) no céu, um valor abstrato e universal que permitiu às identidades e instituições cristãs entraram no terceiro milénio de existência. O ensino dificilmente será viável enquanto o referente agregador for a figura do professor (II República) ou a figura do aluno (III República), mas no momento em que todos passarem a agregar-se pela subserviência ao valor abstrato e universal do Conhecimento. Na instituição hospitalar a mesma coisa, posto que pode ser servida por génios da medicina e por equipas hospitalares altamente qualificadas, porém nada disso é sustentável (e bem pior se o referente agregador for a ideologia) se todos, incluindo os pacientes, não se submeterem ao valor abstrato e universal da Saúde. No exército a mesma coisa, isto é, pode ter nos seus quadros generais e soldados tecnicamente muitíssimo bem preparados, mas a instituição só se sustenta se todos forem submissos ao valor abstrato e universal da Defesa do seu Estado e povo ou povos. Exemplos não faltam.
André Ventura sabe que o Benfica não é o Eusébio…
Por isso, o desafio de ultrapassar o «Partido do André» é incontornável. Tem de ser no imediato? Não! Pode e deve discutir-se desde já com tranquilidade, a nível interno? Claro! A identidade coletiva do Chega tem alguma coisa de errada? Pelo contrário!
André Ventura mantém intacto o potencial de tornar o Chega um partido político dominante. Basta que partilhemos atitudes construtivas. É o que o regime mais teme.