Para não trocar o acessório (a composição do novo governo da AD) pelo essencial (a identidade do PSD), vou centrar-me no episódio originário que determinará o rumo da atual legislatura: a eleição apenas possível do Presidente da Assembleia da República, a segunda figura do Estado, por acordo desesperado entre o PSD e o PS.
Os dois primeiros dias da legislatura (26 e 27 de março últimos) resumiram a transformação histórica e civilizacional em curso iniciada com a entrada na cena política portuguesa de André Ventura e do CHEGA. Os donos do regime como o Presidente da República, demais partidos políticos, comunicação social, entre outros insistem em doses crescentes de irracionalidade. Mandaria o uso da razão que figuras que comprovam há cinco anos (meia década!) que são e serão centrais no presente e futuro de um país civilizado, como Portugal – por cima legitimadas pelo voto popular numa sociedade livre e aberta (basta olhar para a dimensão nacional e socialmente transversal do mapa eleitoral) –, merecessem um tratamento cada vez mais digno e respeitoso por parte das demais figuras institucionais do regime. O problema é que estas insistem no contrário desde 2019.
O «Não é não» de Luís Montenegro que serve para marcar publicamente o seu distanciamento higiénico, e do PSD, em relação ao CHEGA em nada se distingue da violência verbal (não vai além disso por temor da reação popular) dos que acusam, desde o início, André Ventura e o seu partido de «racistas», «xenófobos», «antidemocráticos», «fascistas», entre outros epítetos, assim como dos que reclamam a ilegalização do mesmo. Se André Ventura e o CHEGA não fossem o contrário de tudo de que são acusados, esse conjunto de invetivas justificaria uma guerra civil. Felizmente que há quem seja adulto, inquestionavelmente pacífico, antirrevolucionário e convictamente democrático e, por isso, capaz de olhar para a estupidez humana com a comiseração própria dos civilizados.
Estando em causa manifestações públicas primárias anti-CHEGA sonhariam que, de repente, a sua ordem institucional formal funcionaria às mil maravilhas à custa da submissão acrítica do ofendido. Onde é que o insulto público gratuito, por cima massificado pela comunicação social, poderia alguma vez ser aceite como legítimo? Recusá-lo sem floreados, e fazê-lo no momento e modo que mais dói aos adversários, é precisamente a fonte da força moral, intelectual, cívica, democrática, popular de André Ventura e do CHEGA. Quantos teriam tal coragem numa época de Ditadura Mental de Esquerda?
Nas passadas terça e quarta-feira no Parlamento, André Ventura limitou-se a expressar sentimentos que muitas vezes as circunstâncias existenciais impõem uma leitura para além das palavras e atos literais por remeterem para a nobreza da nossa frágil condição humana. Basta que quem o ouça tenha uma relação entre a cabeça e o coração simplesmente humana, normal, funcional. Por azar da bolha político-mediática, André Ventura é um político raríssimo por não ser de plástico, antes alguém que transporta a alma humana por inteiro para o Parlamento e para aquilo que diz e faz.
Não compreender tamanho óbvio sobre a natureza humana é dos traços mais primários da bolha político-mediática lobotomizada para ser contra tudo de bom que venha da direita. A esquerda gerou dos fenómenos mais massificados de sempre de insanidade mental corrosiva das capacidades básicas do ser humano de compreender os outros e o meio envolvente. O fenómeno agrava-se quanto mais nos aproximamos dos que gravitam na área do poder das últimas décadas.
Tão simples quanto isto: o reforço a cada dia do apoio popular a André Ventura ao longo de meia década consecutiva (não uns mesitos ou episódiozinhos) jamais poderia ter lugar numa sociedade aberta, livre, democrática, escolarizada se a mensagem em causa não transportasse um fortíssimo significado moral, intelectual, cívico, identitário, civilizacional. São hoje raríssimos na comunicação social os capazes de um esforço racional mínimo para entenderem o básico da condição humana.
É extraordinário que, a partir do dia seguinte, a bolha político-mediática não se tenha esforçado para compreender que André Ventura e o CHEGA não têm qualquer problema pessoal com a eleição de José Pedro Aguiar-Branco, do PSD, para Presidente da Assembleia da República. Bem pelo contrário. A bolha político-mediática é incapaz de perceber que foi ela quem remeteu o que se passou naqueles dois dias no Parlamento para o sítio errado para forçar, como sempre, a sociedade inteira a ir atrás dos seus ódios primários. Tudo se resumiu a mais um conjunto de episódios da guerra psicológica permanente de tipo soviético contra as pessoas comuns. Cada vez mais os portugueses reagem negativamente à bolha político-mediática, tendência irreversível em todos os fenómenos de busca de equilíbrio mental coletivo.
Os verdadeiros donos do regime, a esquerda, julgavam ter descoberto a fórmula inquisitorial mágica para esconderem dos portugueses a causa do problema além deles mesmos. Após os resultados eleitorais de 10 de março último, fica inequívoco que o maior obstáculo à funcionalidade da democracia portuguesa chama-se PSD, jamais os eleitores. Descontado o interregno da liderança de Pedro Passos Coelho, Luís Montenegro é mais um que veio agravar o problema identitário do PSD, desta feita em definitivo.
Como é próprio de épocas de crise em que se torna mais premente a busca da racionalidade pelas próprias sociedades porque as pessoas se sentem perdidas, está a tornar de senso comum que direita e esquerda são, acima de tudo, escolhas morais, cívicas e políticas inconciliáveis por remeterem para orientações contraditórias sobre a essência da condição humana. Em concreto, porque o valor matricial da direita, a autorresponsabilidade (cada indivíduo ou coletivo ser o primeiro e principal responsável pelo seu destino), simplesmente não é compatível com o valor matricial da esquerda, a externalização da responsabilidade (o direito de uma parte da sociedade de responsabilizar os outros em primeiro lugar e em permanência pelo seu destino a pretexto de se ser pobre, pertencer a uma minoria e outras conveniências). Como consequência, direita e esquerda são também inconciliáveis nas atitudes e comportamentos face à essência do processo político, posto que uns rumam sempre em defesa do ascendente da Sociedade sobre o Estado (direita) e outros rumam sempre na rota inversa (esquerda). Claro que uma ou outra opções geram impactos bem distintos na vida habitual das sociedades.
Isso basta para evidenciar a anormalidade do «Não é não», de Luís Montenegro, antes e depois das eleições de 10 de março último. Marcar fronteiras identitárias entre direita e esquerda é e será tanto mais decisivo para a viabilidade saudável das democracias quanto mais próxima for a vizinhança, quanto mais estiver em causa o Bloco Central, sob pena do suicídio de um dos lados. Ignorando o óbvio, o PSD não desiste de entregar o seu destino nas mãos do PS. Este, por seu lado, nunca hesita na sua identidade de esquerda por saber que domina mentalmente o PSD, a ponto do partido de Luís Montenegro não sair debaixo da asa do PS sem grande temor.
René Descartes explicou o fenómeno em 1637. O PSD representa aqueles que, perdidos numa floresta de irracionalidade, insistem em andar à roda e, por isso, não conseguem sair da floresta. Tanto insistem que, em 2019, André Ventura com a criação do CHEGA apresentou-lhes a solução cartesiana: escolher um rumo, a direita, e caminhar sempre e sempre nesse sentido, não mudar para se sair da floresta (mental, identitária, social, política, o que seja).
Em 2024, nos dois primeiros dias da nova legislatura o PSD veio comprovar que se deixou encurralar, em definitivo, por recusa da mais básica racionalidade cartesiana. Resta agora ao PSD ora virar-se para a direita, para o CHEGA e nos termos deste, ora para a esquerda, para o PS e nos termos deste. A eleição do Presidente da Assembleia da República, José Pedro Aguiar-Branco, nos passados dias 26 e 27 de março de 2024 ficará para a história como a última oportunidade do PSD estancar a sua erosão identitária, mas Luís Montenegro deu-se ao luxo de desperdiçar. O racional cartesiano não engana: o mal-estar na civilização, expressão de Freud, é tão profundo que a sociedade portuguesa irá continuar a deslocar-se para a Direita e aí ficará por gerações.
André Ventura e o CHEGA perceberam. Após o suicídio do PSD nos primeiros dois dias da atual legislatura, depressa iremos perceber o desespero do governo da AD por novas eleições a ver se salva a dignidade do seu próprio enterro.