Ai, meu deus, aconteceu outra vez. Estou envergonhada.
Os britânicos, todos sabemos, são um bocadinho estranhos. Por um lado, somos fabulosamente arrogantes, como os franceses. Por outro, e ao contrário dos franceses, sofremos um complexo de inferioridade terrível quanto à nossa culinária nacional.
Esta dicotomia inspira-nos comportamentos esquisitos. Vamos buscar receitas a outros países, porque nos sentimos inferiores, e depois mudamo-las para serem como nós achamos que deviam ser, porque somos arrogantes.
Um exemplo desta apropriação é a receita para pastéis de nata na edição deste mês da revista “Good Food”, editada pela BBC. Encontramos aí umas coisas horrendas, feitas de uma receita que foi inventada, presumivelmente, por causa do nome e por causa de uma aparente falta de conhecimento do que é um pastel de nata na realidade. Não, Grã-Bretanha, não há nata nessa coisa que hoje em dia se vende aos milhões todos os dias em Portugal com o nome de pastel de nata. Sim, é confuso, mas vá lá, também não há sapos dentro de um “Toad-in-the-hole” (sapo no buraco).
Ok, qualquer coisa é melhor do que a “custard tart” inglês, que é uma aberração de leite creme com textura de borracha dentro de uma massa areada industrial. Não estou a exagerar quando digo que só ao fim de quatro anos a viver em Portugal é que provei um pastel de nata, apenas porque me disseram que era um “custard tart”, e a minha alergia aos custard tarts ingleses era realmente forte. Mas o aspecto desta “Portuguese Egg Custard Tart” é pouco melhor. Para ser justa, na revista não lhe deram o nome de pastel de nata, mas todos sabemos que isso era isso que queriam dizer. Com a recente subida meteórica do pastel, é pouco provável que fosse receita para outra coisa. A moda é a moda.
Não foi a primeira vez. Há umas semanas atrás, o Jamie Oliver apresentou aquele bacalhau à Brás ridículo, e há um par de anos, apareceu o caldo verde de risos do Nigel Slater, com as suas folhas inteiras de couve e quilos de chouriço.
Fora os pastéis de nata, falando esteticamente, o problema é que a maior parte dos pratos portugueses não tem o aspecto desejado pelos chefes célebres e pelas corporações da media, para merecerem ser colocados nos seus livros e websites. A maior parte da culinária portuguesa tradicional não é muito fotogénica. Imagine tentar tornar lindo um prato como o cozido à portuguesa, a dobrada ou uma açorda. Realmente, não há nada que a fotografia — de alto contraste, cores frias, profundidade de campo reduzida, fotografada numa mesa antiga do jardim com loiças variadas — possa fazer para tornar bonito o pão esmagado em água quente, com ou sem grandes gambas a nadar dentro.
Um monte de bacalhau à Brás, feito como deve ser, não tem aquele aspecto lindo da versão arranjada no prato pelo Jamie, com aquelas batatas crocantes à volta (não são lá para serem estaladiças… as batatas amolecem dentro dos ovos. Todas as batatas, ó Jamie, todas). O caldo verde, a não ser que haja tempo e paciência para cortar a couve à mão, tem um aspecto um pouco industrial, e por isso, claro, a versão do Nigel tem aspecto melhor, pelo menos para eles (mais rústica, talvez?). Para mim, só me faz rir.
Já agora, por favor, não levem nada disto mal. Eles, isto é, nós fazemos isto a todos e a tudo. Cresci nos anos 70 a comer “coq au vin” e tenho quase a certeza de que não tinha nada a ver com “coq au vin”. O prato nacional da Inglaterra não é os “fish and chips” como sempre me dizem os portugueses, mas “Chicken Tikka Masala”, que nem é indiano, mas uma confecção baseada em tandoori com um molho de cor laranja que é horrível.
Que mal faz este hábito britânico? Ao lado de todos os males do mundo, nenhum, mas irrita.
Irrita que vocês, portugueses, ainda achem que a culinária britânica é uma porcaria, e irrita quando, ao apropriarem-se de uma receita para a “melhorar”, os britânicos confirmem que é de facto uma porcaria. Se um chefe culinário não pode reproduzir um creme de ovos simples, pela vista e pelo sabor (e levando o nome todo a sério), pois não é um grande chefe culinário. Irrita que haja pessoas (embora sejam pouco inteligentes) que, ao visitar Portugal, vão ficar desiludidas porque o pastel, o caldo e o bacalhau à Brás genuínos que encontram cá não são as coisas que a BBC, nem o Nigel, nem o Jamie lhes prometeram.
Irrita que os chefes célebres ainda exerçam tanto poder acima de tanta gente. Lá e cá.
(uma nota de rodapé: a BBC não é assim TÃO parva. Não puseram farinha do milho na receita dos pastéis de nata. “Cornflour” não é farinha do milho, mas sim amido de milho (e nos EUA, amido é “cornstarch”)…. a minha cabeça é capaz de rebentar se precisar de explicar esse facto mais uma vez nesta vida, tal como a tradução correcta de “hysterical”, que não há histérico … mas lá iremos a esse tema num outro fim de semana).
(texto traduzido do original inglês pela autora)
Culinary colonials
Oh god, it happened again.
I’m so embarrassed.
The British, as we all know, are a bit weird. On one hand, we are spectacularly arrogant. Like the French. On the other hand, and unlike the French, we have a terrible inferiority complex about our national cookery.
This odd dichotomy makes us do weird things. We go and find recipes from other countries, because we feel inferior, and then we change them to how we think they SHOULD be, because we are arrogant.
A case in point is BBC Good Food magazine’s recipe for pasteis de nata this month. It shows some staggeringly awful looking things, with a recipe presumably invented because of the name (no, Britain, there is no nata in what you know as the pastel de nata that is sold by the millions every day in Portugal. I know, it’s confusing, but hey, there are no toads in toad-in-the-hole, either) and little prior knowledge of an actual pastel de nata.
Ok, anything is better than the English custard tart, which is an aberration of rubbery custard on dry industrial shortcrust pastry. I’m not exaggerating when I say it took four years of living in Portugal before I would go near a pastel de nata because it was a “custard tart” because of my deep seated “English Custard Tart Trauma”. But the look of this “Portuguese Egg Custard Tart” isn’t much better than that. To be fair, they don’t name it as a pastel de nata, but we all know that that’s what they meant, don’t we? With the pastel’s meteoric rise in recent times, they’re not going to do a recipe for anything else. Fashion is fashion is fashion.
Go back a few weeks and there was Jamie’s ridiculous bacalhau à Brás. A couple of years ago, Nigel Slater’s preposterous caldo verde, with vast leaves of cabbage and kilos of chouriço.
Aside from pastéis de nata, aesthetically speaking, Portuguese dishes really aren’t up to the job of what a British celebrity chef or corporation wants to stick in their book or website. I get that. Most traditional, un-fancified Portuguese cookery is pretty un-photogenic. Imagine trying to make cozido à portuguesa look nice in a photo, or a pan of dobrada, or açorda. Really, there’s nothing that high contrast, cool filtered, short depth of field photography, shot on a garden table in northern light with mismatched crockery can do to make watery mushed up bread look good, even if there are massive prawns swimming in it.
A pile of bacalhau à Brás, when made as it’s supposed to be, isn’t half as appealing to look at as what Jamie arranged on a plate with its crispy potatoes arranged around the side (they’re not SUPPOSED to be crispy… that’s the whole point… the potatoes DECRISP when you lovingly envelope them in eggs. All of the potatoes, Jamie, all of them). Caldo verde, unless you can be arsed to shred the cabbage yourself, inevitably looks a bit industrial because of the uniformly shredded kale, so, of course, Nigel Slater’s version looks better, to them, at least. More rustic, maybe. It looks horrific to me.
Don’t take it personally. They, we, do it to everyone and everything. We grew up eating coq au vin and I can be fairly sure it wasn’t coq au vin. The national dish of England is not fish and chips as you are always telling me, but Chicken Tikka Masala, which isn’t even Indian, but an invention based on tandoori chicken and served in a gloopy bright orange sauce. Dreadful stuff.
Does it matter? In the grande scheme of things, of course not, but it is irritating.
It’s irritating that you still think that all British cooking is rubbish, and it’s irritating when, upon appropriating a recipe to make it “better”, they confirm that it is indeed rubbish. If you can’t even reproduce a simple custard from sight and flavour (and fail to ignore the name) then you’re no great chef. It’s irritating that some (albeit not very intelligent) people will come here and be disappointed that the genuine pastel, caldo or à Brás isn’t what the Beeb, Nigel or Jamie promised them.
It’s irritating that celebrity chefs still exert such power over everyone, there and here.
(a footnote: the BBC aren’t SO mad as to put cornmeal in a recipe for custard tarts. Cornflour is NOT cornmeal, it is the English way of saying cornstarch… my head might explode if I have to explain that one again, along with “hysterical”…. but hey, another day, another column)