Segundo as referências bíblicas, há cerca de dois milhares de anos, a nordeste do mar da Galileia e após saber da morte de João Batista, Cristo terá utilizado dois pães para alimentar uma multidão de mais de cinco mil pessoas, naquele que ficou celebrizado como o milagre da multiplicação dos pães. Hoje, volvidos cerca de dois milénios, o BCE (Banco Central Europeu) está empenhado em reverter este milagre, transformando a multiplicação em divisão e a abundância em escassez. Mas não para todos.

Com o intuito de controlar a inflação que se tem vindo a fazer sentir a nível global, consequência dos elevados fluxos financeiros verificados no cenário pós-pandémico e potenciada pela incerteza associada à Guerra na Ucrânia, que levou a um aumento generalizado do preço das matérias-primas, com impacto em todas as etapas das cadeias de produção e abastecimento, o BCE – tal como a FED (Sistema de Reserva Federal dos Estados Unidos) e outras entidades centrais – tem vindo a tentar mitigar estes efeitos através de uma intervenção ao nível da procura. Convictos de que uma diminuição da procura irá provocar um abaixamento generalizado de preços e, consequentemente, uma redução da taxa de inflação para valores a rondar os 2% – objetivo traçado pela Presidente do BCE, Christine Lagarde. Para isso, os bancos centrais têm procurado atuar ao nível da política monetária, nomeadamente com o aumento das taxas de juro, as quais, na zona Euro, já aumentaram 300 pontos-base, tendo passado de -0,5% em julho de 2022 para os 2,5% em vigor. O Presidente do Banco de Portugal, Mário Centeno, afirmou recentemente que “temos de ter alguma paciência”. A sabedoria popular diz-nos que a tristeza não paga dívidas, mas importa recordar a Mário Centeno que a paciência também não.

Segundo o Banco de Portugal, em julho de 2022, quando a taxa (de depósitos) do BCE estava em -0,5%, a prestação média mensal do stock de empréstimos para habitação própria permanente era de 294€. Hoje, passados escassos 6 meses, é de 351€. Um aumento que ronda os 20 pontos percentuais e com um impacto direto na vida das famílias portuguesas, obrigando a uma ginástica orçamental ainda mais apurada em famílias onde os baixos salários eram já uma realidade e o estrangulamento financeiro uma constante. Seria inevitável o que veio a suceder em seguida: mais de 400 milhões de euros em crédito à habitação foram já renegociados pelas famílias portuguesas. As instituições financeiras preveem um agravamento destes números ao longo de 2023. Naturalmente, a concessão de crédito à habitação tem vindo a abrandar todos os meses, tendo diminuído 200 milhões de euros durante o mês de janeiro, tal como os empréstimos às empresas, que caíram pela primeira vez desde 2019, recuando 0,1% no primeiro mês do ano.

Segundo o INE (Instituto Nacional de Estatística), o indicador de inflação subjacente, que exclui os produtos alimentares não transformados e energéticos, subiu 0,2 pontos percentuais para 7,2% em fevereiro. No entanto, o índice referente aos produtos alimentares não transformados teve uma maior aceleração durante este período, passando de 18,5% em janeiro para 20,1% em fevereiro. Prova disso é o facto de os portugueses terem feito o maior corte de que há registo no volume de comida em 2022, apesar de terem gasto mais dinheiro do que nunca, com um aumento expressivo de 9,7% nessa despesa. Evidência inequívoca da perda de poder de compra por parte dos cidadãos nacionais, situação que se verifica em menor grau na maior parte dos países europeus, os quais possuem salários médios mais elevados e uma maior estabilidade financeira.

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Torna-se perverso verificar que, num cenário de elevado constrangimento de liquidez por parte das famílias, os lucros da banca rondem os 5,5 milhões de euros por dia, ascendendo a 2.000 milhões de euros em 2022. Isto representa um aumento de 52% relativamente ao ano anterior, sendo o melhor resultado líquido do setor em muitos anos, tendo as receitas com juros rondado os cinco mil milhões de euros. Esta subida das taxas de juro levou a que a margem financeira disparasse uns impressionantes 30%, o que levou bancos como a Caixa Geral de Depósitos (CGD) e o Santander Totta a apresentar uma rentabilidade de capitais próprios (ROE) a rondar os 10%, sendo este um indicador de referência no que diz respeito à atração de investidores para um setor de capital intenso, cujo excedente tende a ser convertido em dividendos a distribuir pelos acionistas com um diminuto retorno à sociedade.

Ao mesmo tempo, segundo a Deloitte, as 250 maiores empresas de retalho do mundo viram as suas receitas aumentar em 8,5% no ano fiscal terminado a 30 de junho de 2022, para 5,2 biliões de euros. Este ranking, onde a Jerónimo Martins, dona do Pingo Doce, aparece no 47.º lugar e a Sonae, dona do Continente, ocupa a posição 143, é liderado pela americana Walmart. Segundo a ASAE, as margens médias de lucro bruto em alguns dos principais bens alimentares essenciais chegam aos 50%.

Num cenário macroeconómico altamente desfavorável para as famílias, a previsão é de que o futuro se torne ainda mais tumultuoso. Ao intervir numa comissão do Senado Norte-Americano, o Presidente da FED, Jerome Powell, referiu ser “provável que o nível final das taxas de juro seja mais alto do que o antecipado previamente”, tendo em conta os dados económicos mais recentes. Recordar que naquele país, cujo impacto na economia mundial é evidentemente estrutural, a principal taxa de juro já se encontra acima dos 5%.

Os portugueses vêm-se assim confrontados entre passar fome para dar guarida aos lucros da banca ou abandonar a sua casa para alimentar os lucros das cadeias de retalho. Apesar da metáfora bíblica inicial e da proximidade temporal à Páscoa Cristã, a opção de jejuar deve ser um desígnio religioso opcional e individual, não uma imposição política de especulação coletiva.