Temos ouvido falar muito de golpes de estado nos últimos tempos, seja por via de mais um aniversário do 25 de Abril, seja por via de especulações sobre a possibilidade um golpe de estado na Rússia de Putin. Mas quais são as condições ideais para levar a cabo um golpe com sucesso? E em vista disso como devemos pensar hoje o 25 de Abril?

Muitos golpes ou poucos?

Se pensarmos bem, a grande questão não é saber porque há militares a tomar o poder pela força. O grande mistério é saber porque é que os golpes militares não são mais frequentes. No último ano tivemos um número recorde para o século XXI de cinco golpes militares, nomeadamente no Sudão e na Birmânia/Myanmar. É uma má notícia, mas este número está longe de representar a maioria dos 193 Estados representados na ONU. O que impede os militares de tomar o poder pela força – um campo em que têm uma vantagem evidente em termos de capacidades e organização?

A relativa raridade de golpes militares é explicada fundamentalmente por problemas de legitimidade e de eficácia. É difícil mobilizar militares para derrubar um governo sem garantias mínimas de sucesso, e isso é complicado se o regime em questão for visto como legítimo e eficaz pela maioria da população. Mais, é muito difícil para os militares governarem sociedades e economias complexas e diversificadas, sobretudo se, além de oposição popular, não puderem contar com a colaboração ativa de elites civis, económicas e tecnocráticas. Uma guerra que não está a correr bem e uma economia em queda livre são propícias a um golpe de Estado. Ambas estão a verificar-se na Rússia, mas há relativamente pouco tempo. A história mostra-nos que, tipicamente, são precisos meses e até anos, para se verificar uma terceira condição fundamental de sucesso – uma fratura significativa entre as elites políticas e militares.

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O 25 de Abril

O golpe de 25 de Abril de 1974 é um exemplo dum golpe militar bem executado num contexto propício. O regime de Salazar tinha-se legitimado pela estabilidade económica. Ficou muito fragilizado por um enorme choque inflacionário, resultado da guerra israelo-árabe de 1973. Nesse ano a inflação atingiu 13%, e verificou-se uma vaga de greves, apesar de serem ilegais. A contestação dos jovens universitários ia-se agravando com a perspetiva de serem obrigados a combater em Angola, Guiné-Bissau e Moçambique. A oposição política dava sinais de renovada vitalidade e unidade contra o regime, organizando-se o III Congresso da Oposição Democrática, em Aveiro, em abril de 1973, cujas conclusões influenciaram o programa com que os líderes do golpe do 25 de Abril legitimaram a sua ação e que, depois, seria vital para se garantir a realização de eleições livres para uma Constituinte, apesar de forte contestação, em Abril de 1975. Mais, a insatisfação tinha chegado às elites do regime ou próximas dele. A Igreja Católica vinha-se agitando desde 1958, mas a partir de 1971 tinha no novo Patriarca de Lisboa, D. António Ribeiro, um líder com claro mandato papal e determinado a distanciar o catolicismo do salazarismo.

Grande parte da ala mais liberalizadora do regime, desiludida com as hesitações de Marcelo Caetano, tinha-se afastado ou até entrado em dissidência aberta, com Sá Carneiro como seu líder. O Partido Socialista foi fundado, em abril de 1973, na Alemanha, com forte apoio do SPD, num sinal de que havia na Europa Ocidental setores políticos importantes dispostos a apoiar a democratização de Portugal. Sobretudo, os quadros militares, garante último do regime autoritário desde o golpe do 28 de maio de 1926, começaram a afastar-se cada vez mais do que restava do salazarismo e da sua guerra sem fim à vista em África. Basta pensar que, em 1973, os três generais portugueses mais conhecidos e prestigiados – Spínola, Costa Gomes, Kaúlza de Arriaga – estavam a conspirar. O capitão Salgueiro Maia terá dado expressão a este sentimento de esgotamento do regime quando informou a sua unidade da sua intenção de marcharem sobre Lisboa, apresentando as coisas em termos de vários tipos de Estado – desde o comunista até ao capitalista – concluindo que, depois, havia o estado a que Portugal tinha chegado e a que era preciso por fim. Segundo os testemunhos nenhum soldado recusou marchar contra um estado de coisas com que já poucos se sentiam identificados.

Comemorações livres?

O que nos leva, para concluir, às nublosas guerras da memória que têm sido noticiadas em torno das comemorações dos 50 anos do 25 Abril. É uma boa notícia a nomeação para nova comissária das comemorações de Maria Inácia Rezola, uma historiadora com amplo currículo sobre o tema. Mas a este respeito cabe ao Governo e ao Presidente da República desfazer definitivamente duas dúvidas fundamentais. Primeiro, estamos a festejar essencialmente o golpe de Estado de Abril de 1974 com umas adendas para compor o ramalhete? Ou vamos realmente evocar um processo muito mais amplo e com múltiplos protagonistas de construção de um regime democrático pluralista? Espero que se confirme que a opção é claramente pela segunda opção. Isso significa, por exemplo, olhar para os capitães de 1974, mas também para os constituintes de 1976. Segundo, estamos a organizar uma comemoração como uma democracia plena ou, pelo menos ao nível da memória, como uma espécie de democracia tutelada? Um passo fundamental na consolidação de Portugal como uma democracia plena foi, efetivamente, em Setembro de 1982, a extinção do Conselho da Revolução e o fim de qualquer tutela militar do novo regime. É fundamental que, hoje, não exista uma tutela dos atores do período evocado para que estas comemorações corram bem – ou seja, resultem num debate amplo, pluralista, livre, que promova novas investigações e publicações históricas de qualidade, bem como debates pertinentes sobre o futuro da nossa democracia. Não há donos da nossa história, e uma qualquer homenagem aos protagonistas deste período para ser sincera não pode ser tutelada pelos próprios homenageados.