Nenhuma sociedade é suficientemente inclusiva que, por defeito, seja capaz de acomodar todas as formas de identificação, acabando por produzir uma lógica de “nós” e “eles”.
Ou seja, a sociedade é produzida na tensão entre semelhança e estranheza, donde cabe ao Estado de direito democrático e liberal o papel de regular e corrigir os focos de tensão, de modo que a estranheza seja substituída pelo reconhecimento da diferença. Todavia, a história revela que o Estado tende para a conservação do status quo, reconhecendo que a paz social é uma conquista frágil, pelo que a mudança é sempre um fator de desordem indesejada. É nesse espírito que a luta social adquire uma natureza de necessidade.
Contudo, não obstante o mérito e a necessidade das lutas sociais, é preciso que estas tenham uma natureza inclusiva. Ou seja, a luta pelos direitos de determinados grupos não deve ser conduzida à custa da estigmatização de outros, já que o estigma serve de catalisador para o surgimento de extremismos e imposição de uma visão repressiva da diferença (alteridade repressiva). Por outras palavras: o estigma é a porta do radicalismo, seja por parte dos segmentos predominantes da sociedade seja pelas minorias que reivindicam os seus direitos.
Evidentemente, isto aplica-se, em primeiro lugar, ao grupo social maioritário e, sobretudo, se a essa condição de superioridade demográfica corresponder uma posição de domínio económico e social, potencialmente opressora. Todavia, não lhe é exclusiva. Quando os esforços de correção de assimetrias sociais (processo geralmente designado por emancipação, mas cujo conceito é pesadamente ideológico) são conduzidos contra, desdém ou desprezo pelos outros, o radicalismo ganha tração. Tal significa, então, que a estigmatização de qualquer grupo, independentemente do tamanho ou da posição social, apenas perpetua ciclos de ressentimento e antagonismo, donde a procura de igualdade e justiça social não deve, ainda que inadvertidamente, conduzir à criação de novas formas de exclusão e hostilidade.
Assim, a sensação de prazer derivada da desgraça ou estigmatização alheia, conhecida como “schadenfreude“, e a imposição de uma mentalidade repressiva em relação àqueles que não se enquadram no padrão estabelecido ou num modelo de sociedade purificada são comportamentos prejudiciais que corroem a coesão social. Isso vale tanto para a maioria que age com desconforto, fechando-se e criando um espaço de exclusão que pode atingir processos sociais, institucionais e legais de segregação, quanto para as minorias que determinem que a sua agenda dita “emancipatória” deve ser feita e conduzida através da hostilização do grupo social predominante ou da criação de uma espécie de inimigo absoluto e de condição inescapável: o homem branco heterossexual, congenitamente racista, machista e homofóbico, uma versão ressignificada e demonizada da “burguesia” na teoria da luta de classes.
Nesse sentido, e tomando como facto que as lutas sociais de correção de desigualdades sociais, tendo em vista uma sociedade o mais igualitária possível (e onde, por fim, seja o mérito e não a condição de nascimento a, efetivamente, determinar o sucesso) são um imperativo, releva que o estigma é tanto uma consequência desse processo de luta quanto um entrave.
Assim, ao invés de nos enraizarmos nesse ciclo de desumanização e segregação – que é, evidentemente, desnivelado, com maior capacidade de ação por parte do grupo maioritário, e por isso inversamente menos radical que a resposta contrária –, devemos procurar a construção de uma sociedade de pertença alargada, onde os direitos e os deveres (muitas vezes desconsiderados) detenham uma verdadeira universalidade e onde a coexistência pacífica e o entendimento mútuo prevaleçam.