Em 10 de Maio de 1933, completam-se agora 90 anos, grupos de estudantes de dezanove universidades alemãs organizaram um “acto contra o espírito não alemão”, que consistiu na elaboração de uma lista de livros que seriam queimados em praças públicas. Na queima dos livros em Berlim esteve inevitavelmente presente Joseph Gobbels, que não deixou de referir que se estava a eliminar o “espírito maligno do passado”, num “acto poderoso, grandioso e simbólico”. Entre os lançados à fogueira, encontrava-se o livro de Erich Maria Remarque, que deu origem a um filme recente da Netflix, portanto certamente visto por muitos que estejam a ler este texto, A Oeste Nada de Novo, queimado por se tratar de “uma traição literária aos soldados da Guerra Mundial, pela educação da nação no espírito da prontidão militar”. Estes verdadeiros “autos de fé” decorriam do pensamento do que, à época, era tido por “politicamente correcto” nas universidades alemãs. As fogueiras tiveram lugar em dezenas de cidades e não foram actos promovidos pelas SA ou SS, mas por grande parte da elite intelectual alemã.
As obras de Thomas Mann, Prémio Nobel da Literatura em 1929, não tiveram, claro, melhor sorte. Expulso em 1933 da Academia das Artes da Prússia, obras como a Montanha Mágica ou Morte em Veneza tiveram o mesmo destino. No caso desta última obra, seria sempre considerada pelos nazis uma obra degenerada, por conter no seu enredo as pulsões homossexuais do personagem Gustav von Aschenbach face ao jovem Tadzio. Quem não leu o livro, sempre se poderá recordar do filme de Luchino Visconti.
A lista dos livros e autores proibidos durante o regime nazi é extensa, engloba ensaístas, romancistas, poetas, autores de teatro, etc. Lá estão Freud e Einstein, todos os marxistas e judeus, e, óbvio, escritores como André Gide, Joseph Roth, Óscar Wilde, etc.
Visto a esta distância, o lançamento dos livros à fogueira nem eliminou os livros, nem salvou o regime nazi da derrota, mas noventa anos depois esta obsessão de eliminar livros, cujo conteúdo ou linguagem não se encontra de acordo ou não segue as normas do pensamento político correcto – conforme o estabelecem os “grandes educadores” de cada momento histórico – permanece uma obsessão e até tende a agravar-se.
Fazer fogueiras quase um século depois, além de ambientalmente incorrecto, é irrealista e demasiado grotesco. Portando como os “polícias do pensamento” são uma espécie impossível de extinguir, adopta-se um método mais subtil: altera-se o conteúdo dos livros, expurgando-os do que é “nocivo”, mas mantém-se o nome do autor, como se ele assim os tivesse escrito. De facto, desde que os textos fossem devidamente “torturados” pelos censores, e com alguma paciência, poderiam tornar-se “correctos” e “insusceptíveis de causar dano aos leitores” algumas obras de Hemingway, Thomas Mann, ou John dos Passos, só para referir vários dos proscritos pelos nazis. Mas, sabe-se lá porquê, os nazis não foram por aí. Talvez não precisassem de subtilezas ou porque daria menos espectáculo.
Agora, temos notícia que – entre outros – os livros de Enid Mary Blyton, nascida em 1897, escritora inglesa de livros de aventuras para crianças e adolescentes, autora dos Noddy e de Os Cinco, já se encontram publicados com nomes, personagens e enredos adulterados, com o objectivo de convertê-las em obras politicamente correctas, isto é, cumpridoras de imperativos woke, como a eliminação de nomes considerados ofensivos, o respeito pela neutralidade de género, etc. Tal adulteração, claro que descontextualiza inevitavelmente o momento histórico em que os factos narrados tiveram lugar, consistindo numa verdadeira promoção da ignorância. Sendo certo que falar com alguém woke é como falar para uma parede, quanto a diálogo com uma parede ficamos por aqui.
Para os restantes, é conveniente ter a noção de que não existe qualquer diferença relevante, a não ser no fumo, entre a queima de livros pelos nazis e as adulterações e cancelamentos actuais de livros e autores. Trata-se de puro totalitarismo, qualquer que seja a natureza ideológica do censor ou do zelador da boa linguagem. Na Alemanha de 1933, houve quem dissesse profeticamente que começam a queimar-se livros e acaba-se a queimar pessoas. Em Maio desse ano, quando ardiam na fogueira os 20 mil livros da biblioteca de Hirschfeld, foi perguntado onde estaria o dono dos livros. Estava no estrangeiro e doente. Ao que alguém terá comentado “Esperemos que ele bata a bota sozinho, assim não vamos ter de o enforcar ou matar à porrada”.