Há discussões que um dia talvez pareçam absurdas. É o caso da que decorreu na terça-feira, na Assembleia Municipal de Lisboa, inspirada pelo voto do Parlamento Europeu, de 19 de Setembro, equiparando os crimes do comunismo e do fascismo. Como é possível fazer de conta que as ditaduras comunistas do século XX não oprimiram e assassinaram como as ditaduras fascistas?

A razão não tem a ver com qualquer diferença entre comunismo e fascismo, mas com uma iniciativa de Hitler: em Junho de 1941, ao invadir a União Soviética, empurrou-a, muito contra vontade dos seus dirigentes, para o lado do Reino Unido e, a partir de Dezembro, dos EUA. Até aí, a Rússia comunista não tinha apenas ajudado Hitler: tinha dividido com ele a Europa oriental, e imposto na Polónia, que ocupou a meias com a Alemanha, um terror tão sanguinário como o dos nazis. As potências ocidentais, antes de 1939, também negociaram com Hitler, como os comunistas gostam de lembrar. Mas a França e o Reino Unido não partilharam conquistas com os nazis, nem se dedicaram a exterminar milhares de pessoas em países ocupados, como os soviéticos fizeram a 22 000 oficiais polacos em 1940, em Katyn.

Desde 1945, porém, os comunistas usaram a sua colaboração com os Aliados para esconder essas e outras barbaridades. Mais: aprenderam até a invocar as abominações do nazismo para relativizar as suas próprias abominações, como os milhões de mortos da colectivização na Ucrânia. Ora, os comunistas não foram sanguinários por acidente: foram-no porque o ideal e o projecto comunista, tal como o ideal e o projecto nazi, implicavam a eliminação de grupos inteiros da população, em nome da homogeneidade social. Essa homogeneidade era, para uns, biológica, e, para outros, sociológica. Por isso, uns mataram em nome da “raça” e outros em nome da “classe”. Mas ambos mataram sistematicamente, assim como ambos instalaram tiranias onde a ideologia passou por ciência (como as teorias de Lysenko na URSS) e o convencionalismo secou a arte (compare-se a pintura oficial nazi com a soviética). Nem o comunismo deve servir para branquear o fascismo, nem o fascismo para branquear o comunismo.

Tudo isto deveria ser evidente. Não é, porque os comunistas continuam a usar as suas quezílias históricas com os fascistas como maquilhagem para a sua criminalidade. Mas os comunistas apenas se opuseram a ditaduras fascistas ou conservadoras com o objectivo último de as substituir pelas suas próprias ditaduras, como a Europa de leste viu em 1945 e os portugueses comprovaram em 1975. De resto, se a resistência a ditaduras serve de redenção, também os fascistas poderiam invocar os seus serviços contra várias opressões. Rolão Preto, a versão portuguesa de Hitler enquanto chefe dos Nacional-Sindicalistas, foi um inimigo de Salazar. Em 1958, até apoiou a candidatura do general Delgado.

A questão acaba por estar na ideia de que os fascistas são uma ameaça maior à democracia liberal do que os comunistas e a extrema-esquerda que emergiu do comunismo. Para sustentar o medo, comunistas e extrema-esquerda inventam fascistas onde eles não existem. Sempre foram useiros nisso, como Emilio Gentile lembra no livro Quem é Fascista? (Guerra e Paz). Chegamos a isto: assustamo-nos com gente que não se diz fascista nem apoia ditaduras, mas a que os comunistas chamam fascista, e tratamos com deferência gente que se diz comunista, homenageia tiranias das mais bárbaras do século XX, e aplaude os últimos regimes que representam esse horror, como as ditaduras cubana ou norte-coreana. No futuro, vai ser difícil de compreender. Ou talvez não, se alguém explicar, como nos explicaram em 2015, que todos os votos contam.

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