A 30 de junho de 2022, na Cimeira de Madrid, a Aliança Atlântica aprovou um novo “Conceito Estratégico” e endereçou o convite de adesão à Suécia e à Finlândia. O documento estruturante aprovado faz-nos “retornar às origens” e à razão inicial de ser da Aliança, dando maior relevo à defesa colectiva.
O “Conceito Estratégico” aprovado tem uma excepcional relevância em termos de definição das prioridades dos Aliados. No prefácio fica logo definida a ameaça e o principal competidor. A Federação Russa, dada a sua imprevisibilidade no que concerne à ordem Internacional estabelecida, configura-se como a ameaça, sendo mencionada como competidor estratégico a República Popular da China, considerando o aumento crescente do seu poderio militar (convencional e não convencional), assim como a sua estratégia de controlo de infraestruturas relevantes dos países aliados. Para um “Conceito Estratégico” que prevê uma janela temporal de uma década, parece ficar de imediato assente o âmbito de actuação da Aliança, a curto e médio prazo – dissuasão e defesa em relação à ameaça – e, a longo prazo – dissuasão e medidas preventivas em relação ao competidor.
É na definição do ambiente estratégico (14 parágrafos) que são apresentadas as ameaças, os competidores e os desafios. Foi já referida a Federação Russa como ameaça directa e simétrica, sendo apontado o terrorismo como principal ameaça assimétrica, não ficando descurada a ameaça provocada pela instabilidade nos países próximos do flanco sul (África do Norte e Médio Oriente). Além da República Popular da China referida como principal competidor estratégico, são mencionados outros actores (não definidos) por investirem em tecnologias que podem restringir o acesso e liberdade para operar no espaço, degradar as capacidades espaciais da Aliança ou, ainda, que visem as infraestruturas civis e militares, pondo em risco a defesa e segurança dos Aliados. São apontados como desafios o ciberespaço, a degradação dos sistema internacional de controle de armamento e as alterações climáticas, com os riscos associados à diminuição da segurança.
O documento aprovado aponta para três tarefas fundamentais, dissuasão e defesa, prevenção e gestão de crises e segurança cooperativa.
É relevante que três quintos das tarefas definidas sejam destinados à dissuasão e à defesa. Corrobora, no meu entendimento, a ideia de ser um retorno às origens (“back to the basics”) da razão de ser da Aliança: a defesa colectiva.
Nos parágrafos dedicados à dissuasão e à defesa são elencadas as linhas de ação para a sua consecução. É definida, logo no início do capítulo dedicado a esta tarefa, a disposição da Aliança: “Embora a OTAN seja uma Aliança defensiva, ninguém deve duvidar da nossa força e determinação em defender cada centímetro do território aliado, preservar a soberania e a integridade territorial de todos os Aliados e prevalecer contra qualquer agressor. Num ambiente de competição estratégica, promoveremos a nossa perceção global no sentido de dissuadir, defender, lutar e impedir, em todos os domínios e direções, de acordo com a nossa abordagem de 360 graus. A postura de dissuasão e defesa da OTAN é baseada numa combinação apropriada de capacidades de defesa nuclear, convencional e de mísseis, complementadas por capacidades espaciais e cibernéticas (…)”*.
É dada ênfase à forma como se pretende garantir a dissuasão e a defesa, com um misto de tropas e meios pré-posicionados em território da Aliança e outros com capacidade de rápida projeção, garantida a interoperacionalidade dos meios e o treino conjunto dos efectivos.
É de especial relevo para Portugal, atendendo à sua posição geográfica e característica arquipelágica, o que fica definido no respeitante às linhas de comunicação marítimas, “a segurança marítima é fundamental para a nossa paz e prosperidade. Reforçaremos a nossa postura e consciência situacional para deter e defender contra todas as ameaças no domínio marítimo, defender a liberdade de navegação, assegurar as rotas comerciais marítimas e proteger as nossas principais linhas de comunicação”*.
Fica, ainda, definido mais um conjunto de linhas de ação, com especial destaque para a doutrina de utilização do armamento nuclear à disposição da Aliança ou dos seus Estados membros.
Nos dez parágrafos restantes, são apresentadas as ações a desenvolver no que concerne à prevenção e gestão de crises, bem como na segurança cooperativa.
Destas, realço o ponto que refere que “os Aliados têm um interesse comum em contribuir para a estabilidade e gerir os conflitos, em conjunto, através da OTAN. Continuaremos a trabalhar para prevenir e responder a crises quando estas tiverem o potencial de afetar a segurança dos Aliados. (…). Para tal, vamos investir na resposta, preparação e gestão de crises, através de exercícios regulares e alavancar a nossa capacidade de coordenar, conduzir e apoiar operações multinacionais de resposta a crises”* e “o alargamento da OTAN tem sido um sucesso histórico. (…). Reafirmamos a nossa política de portas abertas, (…), como expressão dos nossos valores fundamentais e do nosso interesse estratégico na paz e estabilidade euro-atlântica. A nossa porta continua aberta a todas as democracias europeias que partilhem os valores da nossa Aliança, que estejam dispostas e sejam capazes de assumir as responsabilidades e obrigações da adesão e que esta contribua para a nossa segurança comum. As decisões sobre a adesão são tomadas pelos Aliados da OTAN e nenhum terceiro tem voz neste processo”*. Nestes dois parágrafos estabelece-se a posição comum dos Aliados no que diz respeito à forma de prevenir e gerir as crises e na segurança cooperativa, com a garantia de manter a “política de portas abertas”, através do diálogo privilegiado com a Ucrânia, Geórgia e Bósnia-Herzegovina, independentemente do que possam pensar terceiros estados, não pertencentes à Aliança.
Em conclusão, o presente documento é bem claro nas prioridades da Aliança e (re)centra a segurança coletiva, plasmada no Artigo 5º do Tratado. Parece cimentar a arquitetura de defesa e segurança dos atuais 30 estados membros e, em breve, 32. Por outro lado, não faz tábua rasa sobre os últimos conceitos estratégicos, pois mantém, de igual forma, a prevenção, a gestão de crises e a segurança cooperativa, como principais tarefas da Aliança. É igualmente claro na definição das ameaças (directas, indirectas, simétricas e assimétricas) e dos competidores. Não fazendo futurologia, mas tendo em conta o espaço temporal para que foi aprovado e o histórico da Aliança, poderemos vir a assistir, num próximo conceito estratégico, à passagem de um competidor a ameaça…
O presente documento, aprovado unanimemente como é regra da Aliança, terá obviamente repercussões em Portugal. Depreendo que irá ser discutido o aumento de efectivos e consequente forma de prestação de serviço nas Forças Armadas para fazer face ao aumento de meios humanos previstos no futuro dispositivo pré-posicionado da Aliança. Considero também, que tendo em conta a posição geográfica e a característica arquipelágica do país, poderá (e deverá) ser equacionada a estrutura das nossas Forças Armadas, quer em termos de organização (ramos ou componentes?), tal como o equilíbrio entre eles (mais enfoque na componente aeronaval?). Como ponto final, parece óbvio que o investimento na Defesa Nacional deverá ser incrementado, não só pelo que decorre deste conceito, como pelos compromissos já assumidos e por se tratar de uma função de soberania, não devendo, como tal, ser descurada.
* Traduzido da versão em inglês do Conceito Estratégico da OTAN (Madrid 2022)