1 Contra a democracia
Um dos livros de filosofia política mais desafiadores da última década foi publicado em 2016 por Jason Brennan: Contra a Democracia. Nele, o filósofo norte-americano parte da sua experiência académica: “Para mim, os filósofos e teóricos políticos pareciam demasiado impressionados com argumentos simbólicos a favor da democracia. Construíam explicações muito idealizadas do processo democrático, que tinham pouca semelhança com a democracia do mundo real.” Trata-se de uma visão romântica da política – “a polícia junta-nos, educa-nos e civiliza-nos e torna-nos amigos com bons princípios cívicos” – que é rejeitada por Brennan: “Do meu ponto de vista, a política faz o oposto: separa-nos, paralisa-nos e corrompe-nos, e torna-nos inimigos sem civismo.”
Este posicionamento assenta em dois argumentos. Em primeiro lugar, Brennan recusa a ideia de que a democracia seja um processo capaz de gerar bons resultados, uma vez que a maioria dos eleitores é politicamente ignorante e o regime democrático não gera os incentivos necessários para que se tornem informados (o voto individual não faz diferença). Em segundo lugar, mesmo que a democracia crie mecanismos de incentivo eficazes para a participação política, ainda assim o resultado seria terrível devido às características psicológicas que os seres humanos apresentam.
Para compreendermos este segundo argumento temos de considerar o pressuposto sociológico de Brennan. Para o autor, os cidadãos podem ser divididos em três tipos: hobbits, que são essencialmente apáticos e politicamente ignorantes, preferindo viver as suas vidas sem prestar muita atenção à política; hooligans, que são os fanáticos desportivos da política, podendo apresentar argumentos fortes sobre as suas convicções, embora consumam informação política de forma tendenciosa e tendam a procurar informação que confirme as suas posições prévias; e vulcanos, que pensam a política de modo científico e racional, evitando ser tendenciosos e parciais.
Embora Brennan admita que não são modelos perfeitos, considera que esta divisão representa de modo razoável as sociedades democráticas. A partir daqui, e baseando-se em estudos sobre a psicologia humana (e os seus vieses de raciocínio), defende que “as formas mais comuns de envolvimento político têm mais probabilidade de corromper e atrofiar do que de enobrecer e educar as pessoas. É mais provável que o envolvimento político transforme um hobbit num hooligan do que num vulcano. É mais provável tornar os hooligans ainda piores hooligans do que transformá-los em vulcanos.” E, por isso, estaríamos todos melhor se nos mantivéssemos afastados da política.
O seu argumento contra a democracia pode resumir-se, então, do seguinte modo: acreditar que o regime democrático é capaz de gerar bons resultados é ilusório, porque as eleições são decididas por uma população maioritariamente ignorante; e acreditar que isso se resolve envolvendo politicamente essas pessoas é ilusório, porque os hobbits tenderão a transformar-se em hooligans e estes agravarão o seu hooliganismo, o que significará uma radicalização do debate político que impossibilitará bons resultados. Assim, Brennan coloca-se na longa tradição aristocrática ou elitista da política, que vai de Platão a Joseph Schumpeter, e propõe reformas corretivas da democracia por forma a transformá-la num regime epistocrático.
2 As teorias deliberativas
A reflexão de Jason Brennan é provocadora e obriga-nos a uma confrontação honesta com os atuais dilemas dos regimes democráticos, mas, sobretudo, com as nossas próprias ilusões pessoais quanto à democracia. A leitura do livro é, por isso, altamente recomendável – mas, por agora, queremos usar as suas ideias para pensar os problemas, os limites e, em última instância, a própria existência do mundo que designamos como “caixas de comentários”. Para o fazer, falta introduzir uma referência ao alvo intelectual de Brennan.
No domínio das teorias da democracia, o alvo da crítica do autor norte-americano são as teorias deliberativas, que se desenvolveram nas últimas décadas do século XX. Na Europa, isso acontece, em especial, com os trabalhos de Jürgen Habermas; nos Estados Unidos, com um certo entendimento de John Rawls, um certo espírito republicano-comunitarista de Michael Sandel, mas, sobretudo, com uma apropriação pela área da Ciência Política, em particular James Fishkin e a dupla Amy Gutmann e Dennis Thompson. Recuperando o espírito antigo da política como prática virtuosa e sentido de liberdade, os teóricos da democracia deliberativa entendem que a participação política tem uma capacidade emancipadora dos cidadãos, tornando-os mais informados, mais envolvidos e mais capazes de deliberar.
Estas teorias não recusam a ideia de Brennan de que a maioria dos cidadãos é politicamente ignorante, mas percecionam tal ignorância como uma ignorância racional: o esforço para estes cidadãos de se manterem informados não é compensado, porque o sistema não o valoriza – sentem que não podem fazer a diferença. Mas, contra Brennan, acreditam que, se o sistema democrático for reformado – permitindo novas dinâmicas de participação política através de mecanismos de deliberação pública –, as pessoas serão incentivadas a manterem-se informadas e envolvidas, sentindo que podem fazer a diferença, e isso conduzirá à sua emancipação política. No vocabulário de Brennan, tanto hobbits como hooligans poderão tornar-se numa espécie de vulcanos.
Confrontam-se aqui duas posições clássicas no domínio da teoria política, que se prendem com uma diferente visão antropológica: se considerarmos que todos os seres humanos podem desenvolver competências de deliberação, tenderemos a ser mais propensos a uma lógica democrática; se considerarmos que o ser humano é incapaz de se libertar das suas dinâmicas psicológicas e superar os tradicionais vieses de raciocínio, tenderemos a ser mais desconfiados das propostas democráticas.
3 Contra as caixas de comentários
O salto digital das últimas décadas tornou esta reflexão particularmente relevante, porque permitiu uma democratização do espaço público, possibilitando, como nunca, uma participação e expressão públicas e livres. Isso aconteceu numa primeira vaga com os blogs, os chat rooms e os fóruns, mas foram as redes sociais a consubstanciar uma verdadeira revolução política, abrindo o mundo e diminuindo as distâncias. A academia tem-se multiplicado na tentativa de compreender as vantagens e desvantagens desse impacto (se forem simplistas, as coisas processam-se do seguinte modo: quando as redes sociais ajudaram Barack Obama a ganhar as eleições em 2008 e permitiram as manifestações da Primavera Árabe, foram ótimas; se ajudaram a eleger Donald Trump e Jair Bolsonaro, são terríveis). Paralelamente, foi crescendo o fenómeno das caixas de comentários, em especial dos meios de comunicação.
O principal desafio colocado pelas caixas de comentários prende-se com a determinação dos seus limites. Quando se abre um espaço para a livre expressão, abrimos a possibilidade para que todo o tipo de coisas seja dito. E isso compreende muitas vezes insultos, piadas de mau gosto e vários tipos de acidez implicativa. Saber como gerir estas situações não é fácil. No episódio do programa de rádio Radicais Livres, dedicado ao policiamento da linguagem, o jornalista Pedro Tadeu recorda que, tendo sido sempre favorável à não intervenção nas secções de comentário, verificou a dificuldade da sua gestão quando cumpriu a tarefa de moderador durante alguns meses. Aceitar tudo não é possível e deve haver algum tipo de moderação. Mas há uma dificuldade emocional associada a essa função. Muitos jornais têm, por isso, investido em programas de inteligência artificial que cumpram esta tarefa, rastreando conteúdos ofensivos. Contudo, a simples ideia de reservar a uma máquina o poder de decisão quanto ao que é admissível parece ainda mais assustador do que o próprio conteúdo ofensivo.
Os estudos mostram que a intervenção por parte dos jornalistas tende a moderar o comportamento mais abusivo, para além de ser vantajoso ao nível da fidelização de leitores: fomentando o sentimento de comunidade, faz com que os leitores se liguem ao jornal, o que assegura a subscrição. Mas alguns meios de comunicação e páginas de gestão de notícias optaram por uma estratégia diferente: decidiram eliminar, totalmente, as caixas de comentários, justificando-se com a ideia de que, não só muitos comentários se limitavam a insultos pessoais, como a maioria deles era politicamente ofensiva ou inseria-se no que se designa agora por “discurso de ódio” ou “fake news”.
Ora esta parece ser a pior decisão possível, porque convoca a ideia de silenciamento e faz ecoar a posição de Brennan contra a democracia: os comentários significariam a possibilidade de expressão de ideias politicamente inaceitáveis por parte de hobbits ignorantes ou hooligans que não se sujeitam às regras politicamente corretas. Parece tratar-se, nesse sentido, de uma decisão antidemocrática: convoca-se uma posição de poder para determinar o conteúdo do que pode ser dito, silenciando uma parte da população, e recusa-se a ideia de que a democracia e a deliberação (enquanto discussão e ponderação) possam acontecer fora dos espaços determinados pelas elites. E isso é particularmente perverso em tempos de polarização política e social, pois um lado sente-se excluído da possibilidade de contribuir para a discussão sobre o bem comum, gerando dinâmicas de desconfiança, frustração e revolta.
Em sentido contrário, parece-nos que o debate democrático deve ser o mais amplo possível, mesmo que isso signifique ouvir o que nos parece sem sentido. Recorramos, mais uma vez, a John Stuart Mill e à sua defesa da liberdade de expressão: ouvir vozes diferentes das nossas, ainda que sejam falsas, amplia a nossa visão do mundo. Dá-nos a oportunidade de reconhecermos a existência de outras perspetivas e de fortificarmos a nossa própria posição. Em última instância, podemos mesmo mudar de opinião, e com muita probabilidade vamos tornar-nos mais recetivos às dificuldades dos outros. Se o mundo é plural e as experiências de vida são diferentes, só a expressão de todas as vozes permite uma compreensão mais ampla do próprio mundo – por muito que certas visões firam as nossas suscetibilidades.
É possível que Brennan tenha razão e, partindo do seu argumento, possamos dizer que a maior participação política que o mundo digital permitiu tornou os hobbits em hooligans e radicalizou ainda mais os hooligans. Pensemos no que aconteceu no Brasil e nos Estados Unidos na última década. Mas, para já, em Portugal, os meios de comunicação têm optado por diferentes estratégias, sem enveredar pela dinâmica de abolição da secção de comentários. E a verdade é que acompanhar as caixas de comentários é, acima de tudo, uma experiência humana. Encontramos, como diz Jaime Nogueira Pinto, muita ignorância, mas também tiradas espirituosas, discussões fundamentadas, sugestões relevantes e uma interação rica entre os comentadores – mesmo que não concordemos com o que é dito ou o modo como é dito. No mínimo, aprendemos todos a deliberar melhor.
PS: O Programa Radicais Livres está de parabéns pelo Prémio Autores 2021 da Sociedade Portuguesa de Autores para melhor programa de rádio. Um prémio merecidíssimo pela confrontação honesta e respeitadora dos dois radicais livres, Jaime Nogueira Pinto e Pedro Tadeu, e a moderação nada radical de Rui Pego (com uma referência saudosa a Ruben de Carvalho, pela 1.ª série do programa).