Para muitos romancistas é difícil resistir ao apelo de escrever sobre as suas memórias, ansiando por capturar em palavras os acontecimentos que deram forma à pessoa que são e que proporcionaram a sua própria condição de escritores. Particularmente interessante é o modo como decidem fazer essa captura – o ponto de Arquimedes a partir do qual constroem a narrativa. No caso de Natalia Ginzburg, esse ponto fixo é linguístico: a escritora parte das palavras e das expressões usadas pelos seus familiares e amigos para compor um Léxico Familiar.

Talvez essa seja a doença barthesiana: “Tenho uma doença: vejo a linguagem”, inevitável para quem tem como ofício a escrita. Adquire-se uma sensibilidade especial à utilização das palavras: as que se tornaram obsoletas e deixaram de ser usadas, as que são criadas ou reapropriadas, as que são censuradas. Nessa medida, o escritor é especialmente suscetível aos momentos em que o vocabulário fica mais curto ou é alvo de controlo, social ou político. Foi isso que Natalia encontrou no período fascista que envolve a sua história familiar em Itália:

“Os romancistas e poetas tinham, durante os anos do fascismo, jejuado, pois não eram muitas as palavras que em redor lhes estavam consentidas, e os poucos que tinham continuado a usar as palavras escolhiam-nas com todo o cuidado entre o magro património das migalhas que ainda restavam.”

Esta espécie de clausura é específica dos regimes totalitários: fortemente ideológicos, pretendem ter domínio sobre o vocabulário disponível por forma a que não haja espaço para pensar o inaceitável e o inadmissível. E como George Orwell, outro doente barthesiano, chama a atenção, esse domínio faz-se sempre pela eliminação de palavras, condicionando dessa forma o nosso pensamento, dada a sua relação inextricável com a linguagem.

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Mas importa compreender a razão pela qual é tão importante esse controlo da linguagem. O aspeto central do totalitarismo consiste na eliminação da distinção entre esfera pública e esfera privada. Essa distinção, característica do paradigma liberal, é dissolvida nas ideologias totalitárias porque nelas tudo é esfera pública e comprometimento político. Na verdade, para um iliberal, essa divisão entre espaço privado de liberdade individual e espaço público de participação política voluntária constitui uma deformidade burguesa: uma sociedade justa só pode nascer de uma sociedade absolutamente comprometida e isso não admite divergências pessoais, mesmo que meramente privadas ou internas.

Este é o objetivo final: controlar não só o que é dito e feito na esfera pública, mas também o que é dito e pensado no que seria a esfera privada, por forma a excluir da realidade o que o regime considera inaceitável e inadmissível. Para tal, socorrer-se-á da previsão legal, de mecanismos de controlo social e denúncia popular, de formas policiais de monitorização e vigilância. Todos os regimes totalitários funcionam desta forma e assim se implementam, como Victor Klemperer nos ensinou.

Este aspeto do totalitarismo é muitas vezes negligenciado, mas a sua compreensão é fundamental para adquirirmos distanciamento e promovermos uma análise rigorosa dos acontecimentos atuais. É que aqueles que tanto revisitam hoje a ameaça fascista parecem incapazes de perceber o quanto se aproximam de um totalitarismo semelhante. Essa aproximação está no controlo das palavras usadas, na recusa da liberdade de expressão, nas monitorizações dos discursos de ódio, nas censuras académicas, na queima de livros. Na verdade, as suas tentativas de controlar a linguagem traduzem-se no verdadeiro espírito totalitário: eliminam as fronteiras entre esfera pública e esfera privada, o mesmo é dizer entre fazer, dizer e pensar – e isto independentemente das suas boas intenções.

Hoje são as redes sociais a tornarem-se espaço de intervenção por excelência – afinal, nelas também se dissolvem as fronteiras entre espaço público e espaço privado, constituindo um novo espaço misto que propicia estas formas de controlo. E eis que temos as brigadas digitais de vigilância permanente do politicamente correto que atacam como enxames; as chamadas telefónicas da polícia no Reino Unido para quem publicou opiniões inadmissíveis; as propostas para monitorização do discurso de ódio. E, dessa forma, vão-se criando condições para que as sociedades aceitem os princípios básicos dos regimes totalitários (sejam de que tipo forem), esquecendo os espaços de liberdade que deviam ser privados. Lentamente, os novos totalitarismos encontram-se à nossa porta.