O uso da expressão em língua inglesa não é acidental. Com ela, pretendo remeter para o facto de muitas questões políticas introduzidas na Europa na última década, e em Portugal mais recentemente, serem importações do contexto norte-americano, ligadas essencialmente a políticas identitárias, e que respeitam pouco ou quase nada as realidades nacionais. Em Portugal, temos usado o termo “discurso de ódio”, mas fazemo-lo a partir dessa referência norte-americana e devemos ter isso em conta se queremos compreender este elemento que se tornou omnipresente no nosso vocabulário.

É verdade que nos habituamos rapidamente a novas palavras e acabamos por esquecer quando é que elas entraram na nossa visão do mundo: a partir do momento em que nos familiarizamos com elas, parecem ter estado sempre entre nós. Não é este o caso. Se os comportamentos odiosos, nomeadamente linguísticos, para com certos indivíduos ou grupos existem certamente desde que existe humanidade, o termo “discurso de ódio” é bastante recente e pode ser remetido a uma construção teórico-filosófica específica.

De facto, foi apenas na década de 1980 que, nos Estados Unidos, a Critical Race Theory (Teoria Crítica da Raça, daqui em diante CRT) começou a introduzir este conceito na sua tentativa de reformular o entendimento da First Amendment da Constituição norte-americana, que estipula o princípio da liberdade de expressão. Como vimos, já em 1965, Herbert Marcuse escreveu sobre a necessidade de reagir contra o princípio de tolerância que ele entendia como repressiva, mas foi só com a transformação do pós-modernismo em teorias críticas que a ideia avançou para o plano legal.

Em textos anteriores tenho referido a dimensão filosófica das teorias críticas, mas, em bom rigor, foi na área do Direito que elas se afirmaram primeiramente, procurando redesenhar o entendimento jurídico das sociedades ocidentais. Afinal, os princípios do liberalismo são os princípios do Estado de Direito e se alguns académicos se assumem como ativistas com o objetivo de reformular o estado de coisas, a área do Direito constitui um espaço de ação fundamental. É nesse sentido que nomes praticamente desconhecidos entre nós têm tido uma importância desproporcional nas nossas vidas, como Derrick Bell, considerado um dos fundadores da CRT, e Kimberlé Crenshaw, criadora do termo interseccionalidade. Mas se queremos compreender a importância que o conceito de “discurso de ódio” ganhou entre nós, temos de nos voltar para Mari Matsuda e o casal Richard Delgado e Jean Stefancic.

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Em 1993, Delgado, Matsuda e Crenshaw publicaram Words That Wound: Critical Race Theory, Assaultive Speech, and The First Amendment, articulando um argumento linguístico que tenho revisitado muitas vezes: “Words, like sticks and stones, can assault; they can injure; they can exclude”. Foi um êxito, e esse êxito projetou trabalhos anteriores de Delgado, que há uma década escrevia sobre a necessidade de rever o princípio de liberdade de expressão constitucionalmente protegido, por entender que o discurso racista (que, no final dos anos 80, passaria a ser designado como “discurso de ódio”) se vinha ampliando no meio académico, acompanhando o aumento do número de estudantes pertencentes a minorias raciais.

Importa notar que a primeira emenda norte-americana constitui a mais ampla proteção da liberdade de expressão nos países ocidentais, o que tem deixado o “discurso de ódio” coberto pelo direito de opinião. Mas a popularidade dos textos de Delgado e o crescimento da CRT levaram a que fossem adotados, nas academias norte-americanas, códigos de conduta que visavam eliminar comportamentos apresentados como discriminatórios, ofensivos ou violentos, nomeadamente quanto ao uso de certa linguagem ou “hate speech”.

Podemos ceder aqui facilmente nas boas intenções, mas o problema das pessoas com tenções censórias é que, se lhes for dada importância e oportunidade, elas alargam rapidamente o âmbito do que pretendem censurar. Não surpreende, por isso, que Delgado e Stefancic tenham publicado mais tarde Understanding words that wound, onde ampliam aquilo que consideram “hate speech”. Ou que a feminista radical Catharine MacKinnon, também no domínio do Direito, tenha considerado que a pornografia constitui uma modalidade de “hate speech”. Tudo parecia poder ser abrangido por esta ideia.

Na verdade, não é possível negar que existem pessoas racistas ou atos motivados por ódio. Também não é possível negar que a linguagem pode ser usada para insultar e expressar sentimentos de ódio. Mas a veracidade destes factos não nos deve impedir de identificar a estratégia que está a ser empreendida: 1) com o termo “discurso de ódio”, esta visão ideológica pretende fazer-nos acreditar que as sociedades ocidentais são estruturalmente organizadas em torno de dinâmicas de ódio dirigidas a grupos oprimidos; 2) em função disso, a aprovação de medidas legislativas que visam proibir o “discurso de ódio” revela-se como urgente e fundamental para corrigir as sociedades ocidentais; 3) em resultado, a maioria de nós, cedendo ao efeito redentor do argumento, apoia a proibição dos discursos que são apresentados como sendo de ódio.

O sucesso desta astuta estratégia resultou na adoção na Europa, desde o final da década de 90, de sucessivas medidas legislativas que visam proibir o “discurso de ódio”, apesar de se tratar de uma cláusula jurídica de absoluta imprecisão – como é possível verificar pelo art. 240º do nosso Código Penal.

O efeito só poderia ser trágico e já é possível depararmo-nos com ele entre nós: a produção artificial de um consenso em torno da ideia de “discurso de ódio” impede que muitas medidas políticas sejam alvo de escrutínio público. Não só não é possível posicionarmo-nos contra elas (“é discurso de ódio”), como não é possível sequer levantar questões ou preocupações quanto à sua adoção (“é discurso de ódio”). Basta ver de que forma Isabel Moreira responde às dúvidas que são levantadas acerca do Projeto de Lei nº 332/XV, que estabelece o quadro de medidas que devem orientar as escolas para a implementação da Lei n.º 38/2018, de 7 de agosto (sobre o direito à autodeterminação da identidade de género e expressão de género e à proteção das características sexuais de cada pessoa).

Tal não nos deve surpreender. A ideia de “discurso de ódio” constitui uma ferramenta política para diminuir o espaço de discussão democrática e implementar uma visão iliberal do mundo. Em última instância, apresenta-se como uma ferramenta totalitária: afirmando querer impedir que certas coisas sejam ditas, quer na verdade determinar o que deve ser pensado.