Na linha da cantina da minha empresa, na capital espanhola, a senhora da caixa dirige-se a mim como “guapa” ao perguntar “que te pongo” para o almoço. Esta normalidade deixou-me apática. Sem saber se agradada ou desagradada. Achei gratuitamente simpático. O que é bom e é mau. Gente de fácil trato esta que trata estranhas como as Avós tratam netos na minha terra.

O português cresce a ouvir que as palavras pesam. E por aprendê-las caras e impactantes, desde cedo as começa a poupar. Na Relíquia, a próposito do discurso de Pôncio Pilatos no julgamento de Jesus Cristo, Eça descreve (genialmente) a reação dos ouvintes “E alguns estremeceram – crentes de que todas as palavras têm um poder sobrenatural e tornam vivas as coisas pensadas”.

Ora por Espanha as palavras são mais baratas. Pode ser dos impostos. Não serão caso único. E eu, agarridinha à relação ecónomica entre custo e valor, pensei ver o valor delas diminuir proporcionalmente à curriqueirice com que se utilizam por aqui. Tanto é precioso o filho parido de seus pais como as calças da marca de moda rápida mais conhecida. Quase tudo cabe numa descrição de amável ou porreiro (nas suas varianções locais de “majo”, “guay”, “chulo” ou “mono”) e desperdiçam-se quantidades de medidas como “mucho”, “un montón” ou “tan mas tan” como quem oferece batatas fritas com digestivos pós-jantar (tópico para outro dia). Daí inicialmente, não me ter parecido bem.

Mas agora, regressada à terra de nuestros hermanos após o meu exílio covidário na pátria, percebi que o desprendimento no emprego de palavras como estupendo, incrível, brutal e precisoso é libertador. E noto, em raras ocasiões, emocionada esta minha estéril alma lusitana com a utilização destas colocalidades gentis que com verdade nos relembram da beleza que existe no dia-a-dia. Do sorriso aberto, do dia de sol, do cheiro a flores frescas, do cão e da criança que passam.

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A frieza portuguesa, nas suas elevadíssimas bitolas, que reserva o elogio para as ocasiões raras, parece-me desprezar esse vulgar encantamento.

Diria que o ideal viveria num meio termo entre o pedestal em que o português (tanto a língua quanto o Ser que incorpora a alma do povo) coloca as palavras. Que por respeitoso medo lhes mantém uma distância de segurança alargada. E a confiança que o espanhol (também ambos, mas mais o Ser, já que a gramática não varia assim tanto) se lhes tem.

Sugiro por isso que voltemos ao contrabando dos tempos da fronteira fechada, em que o meu Avô fazia passar caramelos e coca-colas do espanhóis para aí por sabe-los melhor e mais baratos.

Eu por cá, consciente da minha portuguesidade como estava do meu sotaque eborese na segunda-feira ao regressar a Lisboa, denoto, ainda assim, alguma permeabilidade. Os elogios ocorrem-me em maior frequência e com mais naturalidade. Há esperança.

Quero acreditar que também o reverso do que descreve Eça “passa”. Ao pô-las em palavras, tornamos vivas coisas cá dentro. Tornar vocal as coisas bonitas, chama a nós a capacidade de as pensar mais. De as notar. De as apreciar.