A excecionalidade que o mundo e, agora mais do que nunca, a União Europeia vive perante os efeitos da pandemia do novo Coronavirus (e da COVID 19) representa um constante desafio às autoridades públicas, aos agentes económicos e à população em geral. A “transversalidade” das regras de concorrência e as consequências do seu cumprimento (ou não) pelas empresas, bem como as prioridades das autoridades competentes para as aplicarem não escaparam incólumes às mudanças em curso e podem ser consideradas positivas para o futuro.
O artigo 107.º do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia (TFUE) prevê a regra da incompatibilidade com o mercado interno, na medida em que afetem as trocas comerciais entre os Estados-Membros, “os auxílios concedidos pelos Estados ou provenientes de recursos estatais, independentemente da forma que assumam, que falseiem ou ameacem falsear a concorrência, favorecendo certas empresas ou certas produções.” Uma das várias exceções à mesma consiste nas medidas estatais que são “necessárias, adequadas e proporcionadas para sanar uma perturbação grave da economia de um Estado-Membro”.
Em concretização desta última exceção anteontem e ontem a Comissão Europeia aprovou em tempo recorde os regimes de auxílio notificados por França, pela Dinamarca, pela Itália, pela Alemanha e por Portugal, os quais considerou que cumprem igualmente as condições que esta instituição europeia estabeleceu no “Quadro Temporário” publicado na véspera. Significa isto que são consideradas admissíveis as medidas que preveem garantias a prestar pelo Estado, financiamentos por parte de bancos públicos e privados, programas de empréstimo, sistemas de garantias especificamente a PMEs e empresas de média capitalização e uma subvenção para apoiar o fabrico e fornecimento de equipamentos médicos (como máscaras de proteção). Os montantes dos auxílios por Estado-membro oscilam entre os 50 milhões e os 300 mil milhões de euros, sendo que o valor dos dois regimes de auxílio alemães não é publicamente conhecido e somente se prevê que pode ascender a mil milhões de euros por empresa destinatária. As medidas notificadas pelo Estado Português respeitam ao turismo, à restauração (e atividades similares), à indústria extrativa e transformadora, e ainda a atividades das agências de viagens, animação turística, organização de eventos (e atividades similares). Os quatro regimes são dotados de um orçamento total de 3 mil milhões de euros. Palavras para quê? Time is of the essence…
No dia 13 de março a Presidente da Comissão apresentou a “resposta imediata” para a “mitigação do impacto socioeconómico resultante do surto do COVID-19, centrada numa resposta Europeia coordenada” e recordou a “panóplia de munições” que os Estados-membros dispõem para financiarem a economia para além dos auxílios. Entre as mesmas contam-se “subsídios salariais, suspensão dos pagamentos de impostos sobre as sociedades e do imposto do valor acrescentado ou das contribuições sociais e apoio financeiro diretamente aos consumidores” no contexto do cancelamento das viagens. Uma semana depois, a Comissão propôs ao Conselho a ativação da cláusula de derrogação de âmbito geral do Pacto de Estabilidade e Crescimento (PEC) no quadro da sua estratégia de resposta rápida, determinada e coordenada à pandemia de coronavírus. A aprovação desta ativação “permitirá que os Estados-Membros tomem medidas para lidar adequadamente com a situação de crise, desviando-se temporariamente das obrigações orçamentais normalmente aplicáveis no âmbito do quadro orçamental europeu”. Ainda que indiretamente e não assentes em exceções às regras de concorrência, esta flexibilização terá um profundo impacto a curto e médio prazo na concorrência no mercado. Alguns críticos, aliás, consideram que deste modo se permite a subsistência de empresas que em condições normais não subsistiriam devido ao seu insuficiente desempenho e, nessa medida, introduz distorções de concorrência.
A difícil “arte” de escolher “quando não lutar”… É sabido que, tanto à luz do Direito da União Europeia como de inúmeras leis nacionais (incluindo a Portuguesa), em regra são proibidos os acordos e práticas concertadas entre empresas que tenham por objeto ou por efeito restringir de forma sensível a concorrência. E as exceções implicam necessariamente uma análise de “custo-benefício” com ganho para a concorrência no mercado e as suas repercussões positivas nos consumidores.
Por essa razão o dia de hoje é também histórico, na medida em que o apelo constante da Comissão à conjugação de esforços para assegurar “consistência e solidariedade entre países” teve eco na divulgação de uma Declaração conjunta sobre a aplicação das regras da concorrência durante a crise do Coronavírus por parte da Rede Europeia de Concorrência (ECN), da qual faz parte a Autoridade da Concorrência.
Com efeito, nas últimas semanas assistiu-se a abordagens (aparentemente?) distintas por parte dos Estados membros, desde logo, pela “voz” dos Governos e das autoridades de Concorrência, relativamente a fenómenos de cooperação pública entre concorrentes, alegadamente destinados a assegurar o regular funcionamento de “infraestruturas essenciais” (como sejam as redes de transportes e de telecomunicações), bem como o regular fornecimento de “bens essenciais” à população (que incluiu bens alimentares “essenciais” e equipamentos médicos).
Na semana passada foi tornado público que o Governo norueguês decidiu que as regras de Concorrência nacionais não se aplicam ao setor transportador pelo menos durante os próximos três meses, atendendo a que o mesmo é essencial para assegurar o fornecimento de bens e serviços essenciais à população. Nestes termos e a título de exemplo, as transportadoras aéreas SAS e a Norwegian (esta última “em dificuldades financeiras” segundo a imprensa) passaram a cooperar relativamente às rotas.
A congénere holandesa da AdC, a ACM.nl, tornou pública a sua interação com empresas e associações de empresas para a clarificação dos limites da lei para as formas de cooperação que as mesmas pretendam concretizar no contexto excecional atual e poderá entender-se que estaria a adotar um entendimento algo mais “flexível”, ainda que tenha enunciado de forma clara as condutas que continuam a ser consideradas contrárias à lei.
O Governo Britânico tornou pública a sua decisão de temporariamente “flexibilizar certos elementos de concorrência” como parte integrante de um conjunto de medidas que visam permitir ao comércio a retalho “trabalhar melhor em conjunto para alimentar a nação”. Neste sentido, permite-se “ao retalho partilhar informação sobre os níveis de stocks, cooperar no sentido de manter as lojas abertas, partilhar centro de distribuição e veículos de distribuição”, para além de “permitir aos retalhistas organizarem uma pool de colaboradores para prestarem entreajuda se necessário. De acordo com o mesmo comunicado, esta decisão foi tomada após a realização de reuniões com os representantes dos principais grupos de retalho alimentar e várias associações do setor. De forma complementar, a congénere britânica da AdC, a CMA tornou pública a sua estratégia relativamente à “cooperação essencial entre empresas no contexto do COVID 19”. Para além do decretamento da “legal relaxation” pelo Governo e não esquecendo as suas atribuições também quanto à defesa dos consumidores, a CMA assegura não pretender investigar “as empresas pela circunstância de cooperarem entre elas ou de racionarem produtos na estrita medida do necessário à proteção dos consumidores, por exemplo, para assegurar o abastecimento de produtos”. Em paralelo, a CMA dirigiu uma carta aberta às indústrias farmacêutica, alimentar e de bebidas, tendo em consideração a essencialidade das atividades que prosseguem e a importância da manutenção da confiança pelos cidadãos. Assim, constatando o surgimento de algumas denúncias sobre elevados aumentos de preços de certos produtos ou a existência de alegações erróneas sobre a eficácia dos mesmos, a CMA apela à cooperação das mesmas para se “cortar o mal pela raiz” e recorda os amplos poderes de que dispõe para investigar condutas ilegais e a firme intenção de assegurar o bom funcionamento dos mercados.
Por outro lado e em simultâneo, já estão em curso investigações por alegadas práticas anticoncorrenciais no contexto da “emergência sanitária” resultante da COVID-19, por exemplo pela congénere italiana da AdC, a AGCM. Na última semana a AGCM tornou pública uma investigação a alegados preços excessivos praticados pelas plataformas Amazon e Ebay relativos à comercialização de produtos de higiene e desinfetantes para as mãos, máscaras de proteção e outros produtos equiparáveis e também a decretação de medidas cautelares de suspensão (ou encerramento?) de um sítio internet, bem como a suspensão da atividade de comercialização de um fármaco “antiviral” ao preço de 634,44 €. Estas ações foram realizadas em cooperação com uma unidade especial para esta área (Nucleo Speciale de Antitrust) da Guardia di Finanza.
A singularidade dos eventos nestes dias também “atingiu” Portugal. Multiplicam-se os esforços dos agentes económicos na minimização dos impactos socioeconómicos da COVID 19 e da “Declaração de “Estado de Emergência”. Assim e apenas a título de exemplo, lemos a “Carta aberta aos Portugueses”, subscrita por um conjunto de grupos económicos do setor da distribuição alimentar e pela associação do setor (APED) sobre os esforços conjunto que estão a ser feitos para os mesmos continuarem a assegurar o regular fornecimento das lojas. No dia 20 de março, 3 operadoras de telecomunicações apresentaram uma proposta conjunta ao Governo com o objetivo de “manter qualidade dos serviços e assegurar a rede para funções críticas do Estado”. No mesmo dia, a AdC invocou o “momento em que o país enfrenta uma pandemia” para aceitar o “pagamento faseado de uma coima” imposta por falta de notificação prévia de uma operação de concentração, “de modo a evitar algum impacto nos serviços prestados pela empresa (a qual está presente no setor da saúde). Num outro plano que não o de aplicação das regras de Concorrência mas igualmente relevante é a nota pública sobre a realização de fiscalizações pela Autoridade de Segurança Alimentar e Económica a propósito de alegados aumentos excessivos de preços de medicamentos e “produtos essenciais” no contexto do combate ao surto da COVID 19.
Numa comparação que se tente fazer entre a AdC e as suas congéneres cumpre notar desde logo que a aplicação das regras de concorrência nacionais conhece algumas especificidades, o que em parte se poderá atribuir à missão que prossegue e à organização funcional das autoridades nacionais que são competentes para as aplicar. Assim, e de forma muito simplista, são várias as diferenças entre a AdC e, designadamente, as suas congéneres britânica, holandesa e italiana. Desde logo, a AdC não acumula as atribuições de defesa da concorrência e de defesa dos consumidores, tem uma missão especificamente vocacionada para a aplicação das regras de concorrência e é uma “entidade administrativa independente”, não estando sujeita a instruções ou orientações nem do Governo nem da Assembleia da República quanto às suas prioridades de atuação. Estas diferenças poderão, eventualmente, ser atenuadas depois de ser transposta a Diretiva 2019/1/EU que visa atribuir às autoridades da concorrência dos Estados-Membros competência para aplicarem a lei de forma mais eficaz e garantir o bom funcionamento do mercado interno (“Diretiva ECN+”) e cujo prazo de transposição termina em 4 de fevereiro de 2021.
Também há que distinguir as atribuições da AdC daquelas da ASAE. Esta última é um serviço central da administração direta do Estado dotado de autonomia administrativa e que “tem por missão a fiscalização e prevenção do cumprimento da legislação reguladora do exercício das atividades económicas”. Mais precisamente, entre as suas competências contam-se “executar, em colaboração com outros organismos competentes, as medidas destinadas a assegurar o abastecimento do País em bens e serviços considerados essenciais, tendo em vista prevenir situações de açambarcamento”, e “fiscalizar a venda de produtos e serviços nos termos legalmente previstos tendo em vista garantir a segurança e saúde dos consumidores, bem como fiscalizar o cumprimento das obrigações legais dos agentes económicos”. Não tem competência para aplicar as regras de Concorrência, a qual, em Portugal foi atribuída pelo legislador exclusivamente à AdC.
É assim de felicitar a adoção da Declaração conjunta da ECN, embora a sua redação reflita as cautelas que antecipamos que as autoridades de concorrência mais “conservadoras” tenham “exigido” manter no texto e que deixam por clarificar várias questões prementes. De todo o modo é útil sermos lembrados de que “Os diversos instrumentos de concorrência da UE/EEE têm mecanismos que permitem considerar, quando apropriado e necessário, os desenvolvimentos do mercado e económicos”. E também de que o objetivo das regras da concorrência (assegurar a igualdade das condições concorrenciais entre empresas) “permanece também relevante […] [numa] conjuntura de crise”, mas que, não obstante, “a atual situação extraordinária poderá desencadear a necessidade de cooperação entre empresas de forma a garantir para todos os consumidores a oferta e distribuição justa de produtos de escassa disponibilidade”.
Acresce que a ECN reconhece a ausência de carater prioritário na intervenção “contra medidas necessárias e temporárias que sejam implementadas de forma a impedir a escassez de oferta”. Mais sublinha, de forma pedagógica, que “é de importância fundamental garantir que os produtos considerados essenciais para proteger a saúde dos consumidores, nas atuais circunstâncias (p. ex. máscaras faciais e gel sanitário), permanecem disponíveis a preços competitivos” e que “não hesitará em agir contra as empresas que tirem proveito das atuais circunstâncias através da cartelização ou do abuso da sua posição dominante”. Clarifica também a Declaração que “as atuais regras vigentes permitem aos produtores definir preços máximos para os seus produtos” uma vez que “estes poderão revelar-se úteis para limitar aumentos de preço injustificados ao nível da distribuição”. E fica expressa a disponibilidade dos membros da ECN para serem contactados pelas empresas quanto à compatibilidade de tais iniciativas de cooperação com o direito da concorrência de modo a “obter[em] orientações informais”.
É, assim, legítimo esperarmos da AdC que não só aplique o disposto na Declaração, como seja mais ambiciosa no aumento da segurança jurídica a transmitir aos agentes económicos neste período excecional (e desejavelmente transitório). Desde logo o universo de empresas de setores particularmente relevantes no atual enquadramento e que não são mencionadas na Declaração abrange, desde logo, as farmacêuticas e os fabricantes de dispositivos médicos e, tendo em conta os auxílios de Estado agora aprovados, também o setor o financeiro (pela relevância que terá no financiamento às empresas em geral).
A pandemia de COVID 19 e a magnitude das medidas que estão a ser adotadas pelas instituições Europeias e autoridades nacionais não permitem que o status quo das políticas de Concorrência escape incólume e esta prova. Será porventura apenas mais uma das muitas provas que a Concorrência tem ultrapassado com sucesso. De todo o modo, reforça a acuidade da reflexão que a comunidade jurídica e económica já iniciou a nível internacional e que aconselha a que o tema da sua aplicação neste período transitório e absolutamente excecional seja tratado com transparência, realismo, seriedade e pragmatismo. Afinal, o princípio da livre concorrência encontra-se previsto nos Tratados da União Europeia e na Constituição da República Portuguesa. Mas não está só. E há todo um mundo lá fora.