Na última semana conhecemos os rankings escolares e mais uma vez tivemos oportunidade de assistir a uma discussão profundíssima sobre a educação dos nossos filhos. De um lado, pessoas que defendem a escola estatal com unhas e dentes, muitas delas com os filhos no privado, e que entendem que os rankings não têm importância nenhuma. Do outro lado, pessoas que acham que os rankings têm uma relevância absoluta e que mostram indiscutivelmente que a escola estatal é uma desgraça. Passam-se dois ou três dias nesta discussão acalorada e profícua e agora voltamos a falar de educação em Setembro, para o Governo confirmar que o ano lectivo se iniciou muito bem e para a oposição dizer que não foi nada disso. Com excepção destes dois momentos anuais de elevada densidade, o debate político-partidário sobre a educação em Portugal resume-se à pequena polémica e às reivindicações salariais dos professores.

O sistema educativo – sobre o qual a única competência que tenho é o facto de ser pai de duas crianças, confesso – tem, naturalmente, questões relevantes que não são tratadas em todos os graus de ensino. Uma delas é a rede da chamada primeira infância, e a única certeza que temos é que não há partido político que discorde deste facto: há falta de creches.

A OCDE, no retrato anual que faz aos sistemas educativos dos países que a integram, salientava, em 2020, que os pais portugueses têm maioritariamente de recorrer a instituições privadas para encontrar uma solução para os filhos em idade pré-escolar. Segundo dados da organização, os berçários e creches privados são responsáveis por receber 96% das crianças portuguesas, quando a média da OCDE é de 50%.

De acordo com a carta social do Ministério do Trabalho, Solidariedade e Segurança Social, em 2018 contabilizavam-se 2.570 creches, 76% das quais eram entidades não lucrativas comparticipadas pelo Estado, o que proporcionava aos que nelas encontram vagas uma média de 273,80 euros de prestação mensal por criança. É um modelo que privilegia a liberdade de escolha das famílias, que têm ainda a possibilidade de pagar em conformidade com os seus rendimentos. Mas segundo dados de 2017, só nos distritos de Lisboa, Porto e Setúbal mais de metade das crianças não teve vaga numa creche. Na Guarda, Castelo Branco e Portalegre (regiões de baixa natalidade), o valor subia para 70%. Já em Lousada, Paços de Ferreira (dois dos municípios mais jovens), Gaia, Gondomar, Valongo, Felgueiras, Trofa, Paredes, Penafiel, Marco de Canaveses e Amarante nem um terço das crianças teve resposta social para a primeira infância. A oferta é, pois, reduzida.

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Não conhecia quaisquer estatísticas sobre o tema, mas não era uma realidade que me fosse estranha. Porém, como tenho uma filha já no ensino pré-escolar público, quase me tinha esquecido do inferno que é encontrar uma creche com vagas disponíveis em Lisboa para uma criança com menos de 3 anos. Agora, que preciso de uma para a mais nova, volto a lembrar-me que há gente que inscreve os filhos na creche, mesmo no sector privado, quando as mães ainda estão grávidas para garantir a vaga.

Tinha procurado, inicialmente, a oferta social, que me possibilitaria escolher a escola que queria e pagar em função dos meus rendimentos, mas dei sempre de caras com o célebre “não há vagas” e com a sugestão de telefonar para uma creche pública que abriu há pouco tempo – ou de contactar uma instituição privada fora da rede das IPSS. Obedientes, assim fizemos.

Fernando Medina foi, em Outubro do ano passado, inaugurar a Creche da Quinta dos Arcos, nos Olivais, onde salientou que a rede de creches públicas é dos investimentos mais importantes que a Câmara de Lisboa está a fazer. Dei de caras com a propaganda quando andava a dar seguimento à sugestão que me tinham feito e percebi que a propaganda me aparecia mais vezes à frente dos olhos que um número de telefone que funcionasse.

Falei com a Junta de Freguesia, que também não tinha o contacto telefónico – “só temos o que está no Google”. Mas o número que está no Google não está atribuído. “Então passe lá pessoalmente e fale com uma funcionária”. Cumprida a sugestão, depressa ficou tudo explicado. A creche “só está a funcionar para filhos ou netos de funcionários da Câmara”. Não é para as famílias mais pobres da freguesia, não é para crianças com necessidades especiais. É para filhos e netos de funcionários. Um privilégio pago por todos, portanto, para satisfazer uma clientela. E que tem menos crianças do que seria capaz de receber, num cenário de escassez de oferta de ensino para a primeira infância. A solução foi recorrer à oferta privada, privilégio de quem pode suportar a despesa, porque a única creche pública é para outros privilegiados e as IPSS são escassas e estão lotadas.

Há cada vez menos crianças em Portugal. E não há creches suficientes para as poucas crianças que ainda temos. Que isto não seja um tema recorrente na discussão pública é, de facto, espantoso. Percebo que não envolva o grau de sofisticação intelectual do debate sobre o conflito israelo-árabe. Mas este é, pelo menos, um problema que nós podemos resolver. Num país onde é consensual o problema demográfico, talvez se pudesse começar por aí.