Num regime semipresidencialista como é o nosso, cada inquilino de Belém escolhe o seu caminho próprio de afirmação pessoal e política, conforme a leitura e a interpretação que faz dos seus poderes constitucionais e dos limites ao seu exercício.
Ramalho Eanes foi um estabilizador institucional, formal e corajoso, e, apesar de militar influente no 25 de Abril, cumpriu a promessa de civilizar o poder, e de “meter a tropa em quarteis”, até convencer-se – ou convencerem-no – de que poderia condicionar o xadrez partidário. Lançou, então, o PRD, partido que cresceu depressa e se evaporou não menos depressa, um desastre a que podia ter-se poupado. Mesmo assim, ficou uma referência.
Mário Soares, depois de derrotar Freitas do Amaral numa reviravolta eleitoral histórica nas presidenciais de 1986, inventou, a certa altura, as “presidências abertas”, eufemismo que serviu para combater politicamente o então primeiro ministro Cavaco Silva, cujo êxito na liderança do governo o incomodava.
Conseguiu desgastá-lo sem, contudo, o “levar ao tapete”. Regeu a Presidência com o talento de simplificar coisas difíceis, arte que não é para todos, num estilo amiúde bonacheirão, com um toque, por vezes, de aristocrática displicência.
Jorge Sampaio quis neutralizar uma maioria política à direita, que a saída de Durão Barroso para Bruxelas facilitou, seguida da “promoção” a primeiro ministro de um impreparado Pedro Santana Lopes.
Santana foi desastrado à frente do governo, e Sampaio ganhou espaço, sem grande esforço, para abrir caminho à desgraça de José Sócrates, ainda hoje a sonhar com Belém, se as prescrições judiciais o ajudarem.
Em contrapartida, Sampaio não conseguiu remover de Macau o último governador, o general Vasco Rocha Vieira, para lá colocar um amigo jurista que nunca disfarçou tal ambição. E perdeu essa guerra, sem nunca disfarçar o azedume, até no discurso que marcou a transição do território para a China, ignorando o último governador, num gesto que este não merecia.
Já Cavaco Silva, que sucedeu ao ambíguo Jorge Sampaio, pareceu quase sempre um “peixe fora de água”, e habitou Belém longe do fulgor do desempenho, que tivera em S. Bento enquanto primeiro ministro. E acabou por viabilizar a “geringonça”, idealizada por António Costa, a solução impudica encontrada pelo líder do PS para dissimular a derrota eleitoral que o partido sofrera, face a Pedro Passos Coelho. E deu corpo, mesmo que a “contre-coeur”, a uma década perdida com os socialistas no poder.
Finalmente, Marcelo Rebelo de Sousa, trouxe para a Presidência a informalidade que faltou a Cavaco Silva, de feitio rígido e distanciado, mas ficou refém da popularidade de que aprendeu a gostar, como pioneiro do comentário político televisivo, e à qual se afeiçoou rendido, no meio de uma vertigem de “selfies” e de uma incontinência verbal semeada de não poucas gafes.
Presidente-comentador ou Presidente-Rei, epítetos de que não desgosta, Marcelo tem-se desdobrado, ao longo de dois mandatos, cultivando a palavra fácil, em intervenções quase diárias, em qualquer sítio onde apareça um microfone ou uma câmara de televisão.
A “cereja em cima do bolo” foi, contudo, a pressão recentemente assumida sobre os principais partidos para se entenderem e viabilizarem o Orçamento de Estado.
Ao cancelar viagens que tinha previstas à Estónia e à Polónia, Marcelo verbalizou o que há muito devia ser a sua prática: “a melhor maneira que tenho de servir o interesse nacional, neste momento, é não dizer nada sobre isso (OE 25)”.
Após admitir ter tentado influenciar o governo e a oposição socialista no sentido de chegarem a um acordo no Orçamento, evitando novas eleições, o Presidente decidiu adiar as duas visitas de Estado por ser “mais avisado“ ficar para acompanhar de perto os dias que faltam até à entrega formal do documento na Assembleia da República. Uma originalidade.
Ou seja, mesmo em silêncio, Marcelo dramatiza o que espera do PSD e do PS nas negociações em curso.
E se alguém lhe dissesse que os partidos, no governo ou na oposição, têm a obrigação de serem adultos e os respectivos líderes de saberem interpretar, em cada momento, o interesse nacional, dispensando paternalismos?
Oxalá o bom senso prevaleça e que o país não fique basbaque e anestesiado, à espera que a “divina providência” – ou um homem providencial – conduza o rebanho aos redis, sem sobressaltos de maior…
Professor catedrático de Direito e constitucionalista, Marcelo não ignora decerto as “linhas vermelhas” que marginam a sua actuação , mas prevalece-se desse mesmo currículo para pisar terrenos movediços, no limite da constitucionalidade, interferindo no jogo partidário de uma forma inédita e perturbadora.
É cedo para ensaiar o balanço global da sua actuação em Belém, mas com o tempo decorrido e a meio do segundo mandato, há indicadores suficientes para avaliá-lo – como antigamente o comentador costumava fazer, ao pontuar os governantes com notas sibilinas.
Dir-se-á, sem receio de exagerar, que é o Presidente mais “viciado” na sua própria aura de popularidade, encarnando, por gosto, um estilo de “pop star”, incapaz de refrear a sua natureza ou tão-pouco de sacudir o populismo em que incorreu e incorre, descuidando tanto a forma como o conteúdo.
Se o Orçamento passar, ele avocará sempre o principal mérito por esse consenso; se for “chumbado”, também fará constar que fez tudo o que podia para poupar o país a novas eleições antecipadas.
À primeira vista, sairá vencedor em qualquer das hipóteses. Infelizmente, o País e os portugueses não poderão dizer o mesmo.
Basta recordar os milhões de euros injectados e irrecuperáveis na TAP ou na Efacec; os serviços públicos nucleares em pré-colapso; a crise demográfica, com o envelhecimento acentuado das populações; o agravamento da agenda woke, com o seu cortejo de questões de género e de famílias disfuncionais; o crescimento desordenado da imigração, com centenas de milhares de processos por regularizar; o aumento da criminalidade violenta; a economia anémica que não descola, e a forte dependência do turismo – uma indústria volátil; ou o farto desencanto de jovens e menos jovens pela escassez de oportunidades .
Se tudo isto não fosse já bastante, como herança de uma década de governação socialista, subsiste ainda um sistema judiciário perro, com milhares de processos em lista de espera, prescrições a eito, e fugas espectaculares de reclusos perigosos que continuam a monte.
Tudo somado, não se inveja quem tenta ainda governar.
Por muito que custe reconhecê-lo, António Guterres não vai deixar saudades nas Nações Unidas, após dois mandatos como secretário geral da organização.
Poderia ficar na História por ter ocupado um lugar proeminente num período confuso e desafiante do tabuleiro internacional, se fosse capaz de ter uma visão imparcial e descomplexada dos actores em confronto em vários pontos do mundo, designadamente, na Ucrânia ou no Médio Oriente.
Mas ficará na História pelas piores razões, por ser hesitante, e sem uma visão estratégica diante de quadros complexos, sejam os conflitos e os terrorismos que ameaçam a Europa e outras zonas sensíveis do globo, sejam as eleições fictícias da Venezuela e o êxodo contínuo de população para os países limítrofes e para os Estados Unidos.
Na memória recente não houve outro secretário geral considerado “persona non grata”, ademais por um país envolvido num cenário de sobrevivência enquanto Estado.
Israel sofreu na pele o massacre de 7 de outubro, desencadeado por comandos dos Hamas, com muito menos manifestações de “indignados” a Ocidente ou de cobertura mediática, do que as retaliações que empreendeu na faixa de Gaza ou no Sul do Líbano.
Guterres desperdiçou a oportunidade de ficar na História e, titubeante, contraditório, foi incapaz de usar a palavra com autoridade, arrastando a ONU para a irrelevância.
Humilhado em Moscovo quando Putin o recebeu numa mesa excêntrica, Guterres saiu do Kremlin de mãos vazias, perante a invasão russa consumada na Ucrânia; ou agora, proibido de entrar em Israel, devido à fraqueza demonstrada na condenação do Hamas, do Hezbollah ou do Irão, aliados contra o Estado judaico.
Não se pedia a Guterres que fosse o “herói do dia”, mas, ao menos, que não se refugiasse na ambiguidade retórica, nem no aconchego doutrinal das alterações climáticas – que deram e dão muito jeito à jovem activista sueca, Greta Thunberg, a ecologista de serviço, distinguida pela Fundação Gulbenkian, em 2020, com o chorudo e imerecido Prémio da Humanidade, num momento desinspirado.
Descontada a bandeira do clima — que permitiu a Guterres figurar numa capa ridícula da revista “Time”, na qual apareceu fotografado, de fato e gravata, metido na água até aos joelhos –, o ainda secretário geral da ONU tem contribuído, com as suas omissões e ziguezagues, para o afundamento de qualquer vestígio de importância que ainda restasse à organização, que deveria ter um lugar aparte a nível global.
Guterres fugiu de um pântano em Portugal e criou outro em Nova Iorque.
Nota em rodapé – Não há volta a dar-lhe: os “soldados da paz” perderam a face ao desencadearem um protesto “incendiário” – com pneus a arder e muito fumo de petardos -, invadindo a escadaria do parlamento. Um acto impróprio e obsceno.
Percebeu-se logo, ao avistarem-se muitos de punho erguido, como se fossem manifestantes do PCP, que não estavam ali apenas bombeiros, mas agitadores infiltrados, para gerarem ruído destinado aos directos das televisões.
Ouviram-se, até, responsáveis sindicais lamentarem o sucedido e distanciarem-se do desfecho do protesto, confessando que tinham perdido o controlo da situação, e obrigando a PSP a montar um dispositivo para evitar a invasão do parlamento.
Foi tudo lamentável, ao envolver bombeiros sapadores e voluntários, e comprometendo uma imagem de reconhecimento e de prestígio que a comunidade solidariamente lhes dedica. O “subsídio de risco” fez mal a muita gente…
Nota em rodapé 2 – Com esta crónica, fecha-se um ciclo de colaborações no Observador, um dos mais conseguidos projectos jornalísticos, posteriores ao 25 de abril, que completou em maio uma década de existência.
Ser um projecto vencedor não se deve, contudo, ao facto de pertencer ao domínio exclusivamente digital – porque antes deste jornal já surgira outro, de natureza semelhante e de duração efémera –, mas por assumir uma orientação editorial de centro direita, sem medo de preconceitos e avessa a cultivar falsos pluralismos. O que não foi de somenos.
Com a erosão do tempo, o êxito editorial trouxe-lhe invejas e seduções à esquerda, além de entorses à matriz original, com a opinião a resistir melhor do que a informação.
Uma década de vida de um jornal, num País que lê pouco e numa época de incertezas, é muito e é pouco, quando se vêem alguns títulos, até centenários, arrastarem-se penosamente, ou a sobreviverem, apenas, à base de custosos balões de oxigénio, quando não estão encostados a generosos mecenas.
Devo esta experiência, no poente da vida (com muitos anos de jornalismo, teimosamente independente, a remar contra diferentes marés), a Rui Ramos, um dos fundadores do Observador e um dos historiadores portugueses mais lúcidos que conheço, na leitura que faz do passado e do presente.
Devo-lhe, por isso, esta palavra grata de despedida das colunas do Observador, onde muitos leitores fizeram o favor de distinguir-me, por escrito, com apreço e com palavras de elogio, seguramente excessivas, embora eloquentes sobre a visão que têm deste jornal. Todos, porém, gratificantes e recompensadores, incluindo, naturalmente, os que discordaram do cronista, ajudando-o com as suas críticas construtivas.
Esta “homilia” semanal – como alguns amigos, bem-humorados, a quiseram baptizar – recolhe ao silêncio da “sacristia”. Com a consciência de que a procissão ainda nem sequer saiu do adro e de que não faltam nem acólitos e nem noviços a quererem segurar o pálio ou a pegar no andor.
Gostei sinceramente de estar convosco e de partilhar o que penso, sem obediências a credos, a clubes, a igrejas, ou a partidos. E até um dia…