Desde 27 de Junho que as autoridades elevaram o nível de alerta no vulcão de Santa Bárbara para V3. Não é uma grelha de medição a que estejamos propriamente habituados, portanto, vale a pena explicar: aplica-se a vulcões e vai de V0 (“em repouso”) a V6 (“erupção em curso”). O que sucedeu ultimamente no vulcão da ilha Terceira é que passou de V2 (“possível reactivação do sistema”) para o nível acima: “confirmação de reactivação do sistema”. É como aquela luzinha vermelha que se volta a acender no olho do robô que julgávamos exterminado no fim do “Exterminador Implacável I”. Dá um calafrio.

Com o tempo, todos nos habituamos às notícias das desgraças – a frescura da desgraça, digamos, vai-se mais depressa do que a dum robalo. Imuniza-nos, perdemos-lhe o gosto. O primeiro fogo do Verão põe-nos de olhos colados ao ecrã; a meio, já todos mudamos de canal enquanto perguntamos, retoricamente, se as televisões não terão mesmo mais nada para dar. Nas ilhas, o efeito acentua-se; estão mais expostas; são navios mais pequenos no coração da maravilha e das trevas; quando o tempo muda, vai-se a ideia de paraíso e sobrevém a de isolamento (não por acaso a origem das palavras é a mesma: estar isolado é estar “insulado”, tornado ilha).

No caso dos Açores, a coisa tornou-se tão banal que caiu para o ticker de notícias, aquele rodapé que vai rodando, em letras pequenas, na parte de baixo do ecrã dos telejornais, que é para onde tombam as sobras que não couberam no texto do pivô: furacões, ciclones, tempestades tropicais, sismos, vulcões, ou, como os açorianos dizem, terça-feira. Tudo ali, entalado entre as últimas sobre as transferências de jogadores de segunda linha ou a praia escolhida para as férias de Marcelo. Frequentemente, é um amigo continental que nota e pergunta: “está tudo bem com os teus pais? As coisas estão mal lá para a tua terra!” E um fulano, de consciência pesada, sentindo-se o mais desatento dos filhos, lá vai ver o que se passa e ligar para casa: “Hãh. (ou outra interjeição que arraste um encolher de ombros.) Está o mau o tempo do costume”, responde uma voz familiar do lado de lá, com aquele aborrecimento pouco impressionável que logo nos devolve a tranquilidade. O tempo do costume. Como o gaulês que só teme que o céu lhe caia em cima da cabeça, mas sabe que amanhã ainda não será a véspera desse dia.

Desta vez, porém, as circunstâncias pediam um pouco mais. Talvez pelos termos usados pelas autoridades: actividade sísmica “francamente acima dos níveis normais”, “sinais de claro incremento”, “indicadores geofísicos e geodinâmicos bastante acima do normal”. Talvez porque a serra de Santa Bárbara não seja, para o cronista, apenas um nome num mapa, mas o que se vê da janela da casa de seus pais.

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O primeiro telefonema foi para um amigo ponderado e geralmente bem-informado, para tomar o pulso à situação. Segundo ele, o perigo é real; a família está preparada para se mudar temporariamente de ilha se e quando for preciso e instalaram uma app que dá nota, em tempo real, de toda a informação técnica sobre a actividade sísmica na região (no continente, uma pessoa vai ao telemóvel ver o estado do tempo; nas ilhas, acrescenta-se o dos vulcões); ainda assim, concluía com o mesmo realismo tranquilo: “Hãh (ou outra interjeição acompanhando o encolher de ombros). Lá vamos ter de levar com isto.” O contacto seguinte já é feito directamente para a maior fonte de preocupações: como estão as coisas na ilha, pai? “Vai tremendo”, responde o interlocutor, naquele gerúndio que diz quase tudo o que há a saber. “Há pessoas que se assustam muito”, conclui, ele que ficou sem casa no terramoto de 1980. Uma terceira conversa com uma terceira pessoa recorda uma história próxima, recente: um homem pescava na zona da Serreta, outra onde a actividade sismovulcânica tem sido constante; questionado sobre se não seria melhor ir pescar para outro sítio, devolveu: “Porquê? Aqui o peixe já vem cozinhado!”

Chegado enfim à ilha para uns dias de férias, o escriba confirma: foi preciso chegar debaixo do vulcão para deixar de ouvir notícias sobre ele. A vida segue como habitual, a poucos quilómetros da “deformação crustal” e outros eventos que justificaram a subida do nível de alerta. Vai-se a banhos e ao pão, ao trabalho e aos touros. Não é alheamento nem negligência, pelo contrário; é uma consciência permanente, uma aceitação que dispensa palavras inúteis, um subtexto pronto a emergir no momento em que for preciso e não desperdiça energia em questionamentos nem lamentos estéreis.

“V3 – Confirmação de reactivação do sistema” não significa, necessariamente, que um vulcão vá entrar em erupção; em 2022, a vizinha ilha de São Jorge esteve largos meses em V3 e, depois, mesmo em V4, nível que já obriga à evacuação das populações. Até que a crise passou. O vulcão de Santa Bárbara é diferente, de natureza potencialmente mais explosiva, mas que fazer? Não somos domadores de vulcões. A ilha “lá vai tremendo”, “lá vamos ter de levar com isto”, ao menos “o peixe já vem cozinhado”.

A vida é 10% o que acontece e 90% como reagimos, disse o autor de um daqueles livros de receitas para o sucesso. Os açorianos residentes mostram-no todos os dias. Ter um vulcão activo à vista da janela é talvez o lembrete sereno de que não é por termos o fim à espera desde que nascemos que deixamos de viver. Enquanto a lava vem e não vem, têm-se filhos e netos, passam-se verões e invernos, um vulcão explode noutro lugar qualquer, distante, sem aviso, uma coisa nova, extraordinária, começa por aqui. Continuemos. (Um abraço aos amigos madeirenses, de novo cercados entre o mar, o fogo e os políticos.)