A 5 de Novembro assinalou-se o Dia do Cuidador. Este é o nosso contributo para a comemoração e para um debate que tarda e é urgente.

A sociedade portuguesa ainda vive na fase da institucionalização generalizada dos idosos, como bem demonstram os números da Covid e o protagonismo dos lares, transformados ortograficamente em Estruturas Residenciais Para Idosos, ERPI, designação que, obviamente, ninguém reconhece. É a velha receita portuguesa de manter a substância, alterando apenas a designação, como se inovar fosse rebatizar.

Nos lares não há cuidadores, há auxiliares, ajudantes, assistentes operacionais, o que seja, tudo pessoas, que apesar de prestarem cuidados, não se integram numa profissão reconhecida administrativa ou socialmente e, portanto, carecida de identidade profissional. Pelo contrário, estão divididas por várias categorias profissionais, muitas possuem qualificações técnicas muito modestas ou apenas experiência, todas auferem salários baixos, as perspetivas de progressão são quase inexistentes, as condições de trabalho penosas, enfim, um quadro pouco aliciante onde a precariedade e a falta de perspetivas são dois referenciais do quotidiano.

Apesar desta realidade, o país político mobilizou-se para os cuidadores ditos informais, que seriam cerca de 800 mil, número fantasioso, nunca confirmado, mas que continua a ser matraqueado, inclusive pela comunicação social dita de referência, que o usa sem pestanejar, mesmo nos blocos noticiosos de maior relevância.

É facto que ninguém sabe quantos cuidadores ditos informais existem, pela simples razão de que nunca se cuidou de saber com rigor. A uns interessa manter esta ilusão quantitativa, a outros não interessa fazer um rastreio sério. Com a aprovação da nova legislação começam a aparecer números, ainda muito modestos e que são justificados com a elevada burocracia necessária ao reconhecimento do referido estatuto. Vai levar tempo, é positivo haver legislação, não vai contemplar todos, mas é um passo no bom sentido, que se saúda e se deseja venha a ser um sucesso.

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No entanto, nada de ilusões, o princípio de solução dos ditos informais, não pode iludir o gravíssimo problema dos outros, ditos formais. São duas faces da mesma moeda, que importa tratar como complementares e não como antagónicas.

Por isso se assinala a atualidade da recomendação 13 do relatório APAV-Gulbenkian, Portugal Mais Velho, abaixo reproduzida, dada a sua importância, e que vem no sentido do que temos dito e escrito sobre a necessidade de se ajustar a nomenclatura à realidade, assinalando a existência de cuidadores profissionais, reconhecida que seja a sua profissão, e preferindo a designação de cuidadores familiares, os ditos informais, já que é essa a sua etiologia.

(…) 13 – Promover a adoção de termos mais adequados no que diz respeito aos/às cuidadores/as:

  • Cuidador/a profissional, ao invés de cuidador/a formal – a expressão “profissional” realça a preparação académica e profissional para a prestação de cuidados, refletindo assim as habilitações académicas e técnicas que são necessárias para prestar certos tipos de cuidados, bem como o exercício de uma profissão regida por regras deontológicas, procedimentos transparentes e padrões de qualidade;
  • Cuidador/a familiar, ao invés de cuidador/a informal – o termo cuidador/a informal, em relação ao termo cuidador/a formal, parece remeter aquele/a para uma posição secundária ou de inferioridade. Por seu turno, a expressão “familiar” remete-nos para um contexto de maior proximidade e afeto, onde não há um substrato profissional. É de esclarecer, contudo, que o termo cuidador/a familiar não engloba apenas os parentes da pessoa cuidada, mas também vizinhos/as ou amigos/as que assumam a função de cuidador/a.

Com o Modelo de Apoio à Vida Independente (MAVI), em desenvolvimento no país através do Centros de Apoio à Vida Independente (CAVI), surgiu outra categoria funcional, o assistente pessoal, que não é conceptualmente reconhecido como cuidador, mas que não deixa de o ser, que apenas necessita de uma formação mínima, mas que se tiver mais formação em nada prejudica o seu desempenho, bem pelo contrário, e cujo futuro é incerto, dado estar-se perante um projeto piloto, sem nenhuma garantia formal de continuidade.

Olhando para a realidade do país, para a longevidade acrescida da população, para a necessidade de prestar cuidados pessoais cada vez mais especializados a todos os que perdem autonomia para realizarem as suas atividades de vida diária, para a estruturação das profissões da saúde e afins e para a oferta de formação, é imperativo reconhecer que há que repensar o modelo de prestação de serviços na área dos cuidados pessoais e as alternativas de formação aos mais diversos níveis.

Vejamos: quando se olha para as necessidades de pessoas com perda de autonomia, seja definitiva ou temporária, ligeira ou severa, lembramo-nos dos médicos, enfermeiros, fisioterapeutas, terapeutas ocupacionais, psicólogos e daquelas pessoas que sem qualificações nem estatuto profissional se contratam para “tomar conta”, isto é, ser o apoio quotidiano de alguém a quem ajudam em tudo o que é necessário, desde a higiene à alimentação, do deitar e levantar ao passear, da toma dos medicamentos à ida ao centro de saúde, ao correio, a uma loja, enfim, tudo o que fazemos sozinhos até ao dia em que passamos a precisar que alguém nos ajude a fazer.

E assim se caracteriza um cuidador, seja familiar ou profissional, assistente pessoal ou o que lhe queiram chamar, é a pessoa que ajuda outrem nas suas atividades de vida diária. Pode não ter formação? Pode, mas não é a mesma coisa. E, então, que tipo de formação deve ter? Como todas as profissões já existentes, deve ter um nível básico, a que se seguirá um percurso de experiência profissional e de formação contínua com referenciais de progressão associados.

Alternativamente, pode adquirir ab initio formação mais avançada, a que deverá corresponder um estatuto profissional e remuneratório também mais avançado.

Se recordarmos profissões hoje academicamente avançadas com o seu passado ainda não muito longínquo, por exemplo, a enfermagem e os professores do básico para não ir mais longe, reconheceremos que partiram de um patamar bastante mais baixo, cuja evolução lhes permitiu alcançar os níveis atuais.

O mesmo acontecerá com os cuidadores profissionais e já há experiências de cursos superiores profissionais que oferecem formação de cuidadores, embora seja necessário reconhecer que as escolas, os docentes e os próprios estudantes ainda não interiorizaram completamente a missão e a integração profissional dos futuros diplomados, e o mercado não os reconheça como profissionais altamente qualificados, remetendo-os para categorias funcionais e remuneratórias muito abaixo das suas qualificações e prática profissional.

A tarefa que temos pela frente é urgente, complexa e muito desafiadora. Trata-se de contribuir para alterar o paradigma da prestação de cuidados pessoais profissionais e não parece ser boa ideia deixar apenas ao legislador e aos serviços estatais a iniciativa de pensarem o futuro.

Também é recomendável não tratar do problema como se vivêssemos isolados do mundo ou como se o assunto só nos dissesse respeito a nós. A questão é mundial e podemos procurar a solução no quadro mais alargado do espaço político e sociológico em que estamos inseridos – a União Europeia.

Por todas estas razões decidimos dar um contributo, modesto com certeza, mas que desejamos construtivo, para colocar este assunto na ordem do dia das preocupações com a longevidade acrescida e com a perda de autonomia e vamos desenvolver o projeto europeu GivingCare – Empowering Personal Caregivers and Personal Assistants by developing Technical, Soft and Digital Skills, que envolve parceiros portugueses, universidades de Espanha, Polónia e Eslovénia e a Eurocarers, é financiado pelo Erasmus+, e cujos produtos mais importantes serão uma proposta de estruturação de carreira profissional para cuidadores profissionais, planos de cursos básico, médio e avançado, bem como formação contínua disponível também para os cuidadores familiares.