O aborto está na berra, em diversos países. Desde logo, nos Estados Unidos da América, como aqui já disse Gonçalo Forjaz, no seu excelente artigo “Roe vs Wade: a pior decisão depois de Dred Scott vs Sandford”. Os norte-americanos, que foram, em 1973, pioneiros na legalização do aborto, propõem-se agora rever a eufemisticamente chamada ‘interrupção voluntária da gravidez’. Por sua vez, a Organização Mundial da Saúde (OMS) defende esta prática até ao momento do nascimento, o que é, na realidade, um infanticídio (Novo Guia do Aborto, 2022, pág. 66, que é, com mais um 6, o número da Besta: não há coincidências!).
Na vizinha Espanha, acaba de ser aprovado pelo Governo um projecto de Lei que liberaliza ainda mais o aborto, o que motivou uma enérgica reacção da Conferência Episcopal espanhola. O seu Secretário-Geral, D. Luís Argüello, Bispo auxiliar de Valladolid, disse a este propósito: “Defender a vida é uma das linhas vermelhas que marcam a saúde moral e a esperança de um povo.”
Se, séculos atrás, se poderia razoavelmente duvidar da natureza humana do feto, hoje em dia essa dúvida não tem cabimento científico porque, como também afirmou D. Luís Argüello, “os avanços da ciência permitem-nos afirmar, com absoluta certeza, que no seio de uma mulher grávida existe uma nova vida, que precisa de ser cuidada, acolhida e defendida.” Para este efeito, o Secretário-Geral da Conferência Episcopal espanhola alertou para a necessidade de dar às mães “condições, também económicas, laborais e de habitação, que lhes permitam acolher a vida nova a que vão dar à luz”.
Do ponto de vista legal, tem sido habitual a referência a um pretenso ‘direito’ ao aborto, que o Parlamento europeu, a 24-6-2021, quis elevar à categoria de direito humano fundamental. Mas, como explicou o Bispo auxiliar de Valladolid, a afirmação de um tal ‘direito’ é, afinal, o ‘direito’ do mais forte, uma prepotência que pretende justificar a eliminação de uma nova vida que, embora existindo no ventre materno, se distingue por ser outra pessoa, muitas vezes até do sexo oposto.
Também entre nós se tem discutido recentemente o aborto, por causa de algumas práticas médicas em uso e que alguns entendem abusivas. Enquanto a esquerda pretende a sua liberalização, alguma direita politicamente correcta entende que “o aborto deve ser legal, mas não deve deixar de ser um mal” (Público, 12-5-2022).
Em 1940, Álvaro Cunhal, então detido, apresentou a sua dissertação “para exame no 5º ano jurídico da Faculdade de Direito” da Universidade de Lisboa. Este seu trabalho, O Aborto, causas e soluções, foi publicado em 1997, pelo Campo das Letras. Trata-se de um texto relativamente breve – uma centena de páginas – de propaganda política: leia-se, a este propósito, o capítulo “Uma experiência brilhante: a legalização do aborto na URSS” (págs. 87-93). Escrito em pleno estalinismo, é lamentável que o seu autor não tenha tido a lucidez intelectual, nem a coragem política, para denunciar os conhecidos excessos de uma das mais tenebrosas expressões históricas do comunismo.
O finalista Cunhal, para além de citar alguns nomes da sua particular devoção, como F. Engels, K. Marx e Lenin, também se refere a Malthus, Darwin e Nietzsche. No âmbito do pensamento católico, o quintanista faz algumas citações dos Evangelhos segundo São Mateus e São Marcos, de várias epístolas de São Paulo (até cita, na nota 60, uma inexistente epístola aos ‘colonenses’!) e, de passagem, refere Santo Agostinho. A propósito de “O problema da natalidade e a moral cristã”, do Cardeal Jean Verdier, fez, em nota, uma curiosa observação: “É verdadeiramente extraordinário que este seu livro, editado em 1917, tenha conseguido estar 23 anos na biblioteca da Faculdade de Direito de Lisboa sem que ninguém se desse ao trabalho … de lhe abrir as folhas…”!
Como é óbvio, um trabalho com mais de oitenta anos está, necessariamente, muito desactualizado, sobretudo no que se refere aos dados estatísticos e sociológicos. Há, contudo, uma reiterada afirmação de Álvaro Cunhal que merece ser recordada, nomeadamente agora que, infelizmente, não falta quem invoque um alegado ‘direito’ ao aborto. Com efeito, assim escreveu o finalista de Direito: “O aborto é um mal. Nisto estão de acordo todos os escritores, desde os partidários da repressão feroz até aos defensores da legalização” (pág. 71). No capítulo intitulado “A verdadeira luta contra o aborto”, Cunhal volta a insistir: “Visto aceitar-se que o aborto é um mal, revelada a inoperância das leis repressivas, pergunta-se: qual então a verdadeira luta contra o aborto, qual a forma de limitar a razia que ele faz ou de o banir para sempre da sociedade?” (pág. 103).
A declaração categórica de que o aborto é um mal e que, como tal, deve ser banido para sempre da sociedade, é conclusiva no que respeita à inexistência de um pretenso ‘direito ao aborto’ porque, como é óbvio, o que em si mesmo constitui um mal não pode ser fundamento de nenhum direito. Quanto muito poderá ser tolerado, em algumas circunstâncias, enquanto mal menor.
O quintanista afirma ainda que o entendimento do aborto como um mal é, igualmente, o da Rússia bolchevique: “Escritores de todo o mundo deturpam a verdadeira natureza da legislação soviética sobre o aborto. O erro mais frequente dos que criticam a URSS é pensarem (por ignorância ou mentirem conscientemente) que as leis soviéticas consideram o aborto como um bem, defendendo-o e aconselhando-o. Nada mais errado” (pág. 87).
Para fundamentar esta tese, Cunhal cita o decreto soviético de 18-11-1920, que, na sua introdução, afirma: “Durante os últimos dez anos, o número de mulheres que decidiu ‘fazer-se abortar’ cresceu cada vez mais, tanto nos países europeus ocidentais como na Rússia. A legislação de todos os países luta contra este mal, fazendo aplicar penas à mulher que sofre o aborto e ao médico que o executa. […] O Governo Operário e Camponês está consciente deste sério mal para a comunidade. Combate este mal pela propaganda contra os abortos das mulheres trabalhadoras. Construindo o socialismo e introduzindo em larga escala a proteção da mulher e da criança, está assegurado o desaparecimento deste mal.” [sublinhados de A. Cunhal].
Neste diploma, estipulam-se as condições em que se permite a prática do aborto nos hospitais soviéticos, ao mesmo tempo que se proíbe “rigorosamente a qualquer pessoa que não seja médico a operação abortiva”. Também se prevêem medidas repressivas contra as parteiras e médicos que pratiquem abortos fora dos hospitais, os quais deverão ser julgados pelos Tribunais do Povo. Conclui Álvaro Cunhal: “Como se vê, desde a primeira hora os legisladores [soviéticos] consideraram o aborto como um mal” (pág. 89).
É também o finalista de Direito quem refere nesta sua dissertação “uma decisão do CCE da URSS e do Conselho de Comissários do Povo” que “alterou radicalmente, em 27 de Junho de 1937, a lei relativa ao aborto” (pág. 90): “Foi a partir destas considerações que o CCE do Conselho dos Comissários do Povo da URSS, depois de uma ampla discussão popular do projecto de lei durante quase um ano, decidiu proibir a prática do aborto, com excepção do aborto terapêutico, estabelecendo uma ‘crítica social’ à mulher que o faça infringindo a lei e penas de prisão para os que o executem” (pág. 91).
A campanha pela legalização do aborto desde sempre insistiu na injustiça da criminalização da mulher que recorre a esse meio, por vezes em situação de desespero que, se não exclui a culpabilidade, pelo menos a atenua consideravelmente. Essa propaganda era, contudo, falsa, porque nos países ocidentais não havia mães detidas por esse motivo. Não assim na URSS que, já em 1937, proibia o aborto, com excepção do terapêutico, e propunha a ‘crítica social’ da mulher que a ele recorresse, bem como penas de prisão para quem o executasse!
Se até Álvaro Cunhal publicamente defendeu, neste seu trabalho, que o aborto é um mal, é chegada a hora de, em vez de o promover, por via de uma legislação permissiva, dar condições às grávidas, para que possam aceder ao feliz exercício da sua maternidade: o aborto não é um ‘direito’ de que a mulher é beneficiária, mas um crime de que é, depois do filho, a principal vítima. A erradicação deste drama exige a criminalização, não das mães, mas dos que, explorando-as, fazem da sua desgraça um negócio.
Para uma mulher, pôr termo à vida do filho é um dos mais penosos sofrimentos. Pelo contrário, não há maior felicidade do que a de ser mãe: “A mulher, quando está para dar à luz, sente tristeza, (…) mas, depois que deu à luz um filho, já não se lembra da sua aflição, pela alegria que sente de ter nascido um homem para o mundo” (Jo 16, 21).