A história repete-se, primeiro como tragédia, depois como farsa. Ok, já ouvimos dizer – mas ninguém nos avisou de que, um dia, talvez acabasse em tira de BD.

Pedindo desculpa ao leitor mais sensível por abrir a crónica citando Marx, assim a frio, passamos a explicar donde vem a perplexidade: de Elon Musk e do anúncio, esta semana, de que poderá vir a integrar uma eventual segunda administração Trump.

Pessoalmente, a primeira imagem que nos vem à cabeça quando pensamos em Musk (do persa “mushk” – “testículo”) foi a daquele dia em que entrou em palco ao som da banda sonora de Blade Runner para apresentar um carro à prova de bala, deu-lhe dois toques com um martelo e ele partiu-se. Somado a todos os foguetões que já lançou e explodiram, carros que avariaram, simples directos de internet anunciados como grandes acontecimentos, e que se atrasaram quase uma hora ou foram abaixo por motivos técnicos, a primeira pergunta que suscita é: em que momento é que o capitalismo deu tão errado que este tipo acabou como o homem mais rico do mundo?

Antigamente – vulgo, nos idos imemoriais dos anos 90 e 00 – os homens mais ricos do mundo eram fulanos cerebrais, implacáveis, certamente de caracteres péssimos, e gananciosos como tubarões ao cheiro do sangue, mas competentes e consistentes como demónios; hoje, aparentemente partiram de férias por tempo indeterminado e deixaram o sobrinho a tomar conta do escritório. Mas talvez esteja na hora de regressarem, se querem começar a pensar em que mundo queremos deixar aos nossos robôs.

Mas há uma segunda questão intrigante acerca de Musk: como e quando confundiram este indivíduo com um porta-estandarte do liberalismo?

É claro que o conceito de liberal varia consoante a geografia: na América, é de esquerda; na Europa, não é de esquerda nem de direita; e na Penha de França é ser duma direita sanguinária que quer matar a humanidade à fome. Ainda assim, custa não ver as contradições. Quando Musk tem tanto apreço pela liberdade de expressão que não resistiu a comprar e controlar uma das maiores plataformas de comunicação do mundo. Tanto apreço pela democracia que ameaça levar as suas empresas para fora dos estados quando não concorda com as decisões dos seus governadores legitimamente eleitos. Tanto respeito pela soberania e independência dos povos que corta o sinal de internet para impedir ataques militares com que não concorda. Tanto respeito pelo princípio da separação de poderes que tenta desobedecer à decisão de um tribunal de um país soberano (por mais justa ou injusta que fosse – não está em causa). Tanto respeito, enfim, pelos regimes democráticos que não tenha pudor em imiscuir-se nos seus problemas internos, instando a “guerras civis inevitáveis” e afins, e tendo de ser posto no lugar pelos poucos tipos com ar de adultos que vão restando na sala.

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Agora, o “liberalismo” de Musk fica, definitivamente, à vista: um empresário privado que quer ocupar um lugar no governo da nação mais poderosa do mundo – um governo que se anuncia drasticamente conservador nos valores sociais e protecionista nos económicos. Valha-nos Trump e a pasta que lhe pretende dar: a “comissão de eficiência do Estado”. Também ouviu o carro à prova de bala a rachar?

Há quem veja no patrão da Tesla, X, SpaceX, Starlink e afins, uma espécie de vilão de banda desenhada, com os seus satélites apontados à Terra e os seus planos para dominar o planeta. Discordamos. Musk tem mais ar de quem ande a trabalhar num fato de Batman, nos confins da sua Batcave, e que um dia o apresentará ao mundo, enquanto anuncia os seus planos para combater todos males desta pecaminosa Gotham.

Isso é que é perigoso.