Há um novo conceito em democracia, o conceito de “erosão democrática”. A “erosão democrática” acontece quando o povo, a comunidade dos cidadãos, escolhe candidatos ou partidos “iliberais”, de “extrema-direita” ou simplesmente “pouco progressistas”. Para impedir a “erosão democrática” aconselham-se e aplaudem-se medidas – que poderíamos considerar “iliberais” se não visassem promover a “verdadeira democracia” – de proibição da livre expressão de pensamento (mediante o franco uso do rótulo “discurso de ódio” para o pensamento divergente) ou mesmo a anulação de resultados eleitorais inconvenientes – como há bem pouco tempo na Roménia.
Da mesma forma, quando a vontade popular pende para os partidos nacionalistas, como nos Estados Unidos, em França, na Itália, na Hungria e, quem sabe, em Fevereiro, na Alemanha, amaldiçoam-se o “populismo”, as redes sociais e todas as más influências que extraviam o voto do bom e inocente povo e causam a célebre “erosão democrática”.
Andrew Jackson, o populista
O grande agente de “erosão democrática” é, evidentemente, o iliberal populista de extrema-direita para-hitleriana Donald J. Trump. Os analistas mais sérios e mais preocupados com a verdade e o rigor histórico preferem esquecer Hitler e comparar os princípios políticos e o estilo de Trump aos do Andrew Jackson, sétimo presidente americano, presidente em 1829-1837.
Jackson é considerado o pai do nacional-populismo americano, um líder que marcou os grandes objectivos da marcha para Oeste e a identidade nacional americana como uma identidade de fronteira. As biografias de um e de outro são bem diferentes. Enquanto Donald Trump é filho de pai rico, empresário do imobiliário nova-iorquino e estrela de reality shows, Jackson é filho de imigrantes pobres, da “tribo” Scott-Ulster, que povoou os Apalaches.
Nasceu em 1767, na América colonial, e na guerra da independência foi feito prisioneiro pelos ingleses aos 13 anos, com o irmão Robert. Quando um oficial inglês quis obrigá-lo a engraxar-lhe as botas e Jackson se recusou a fazê-lo, o inglês deu-lhe com a espada na cara, deixando-o marcado para a vida.
De grande estatura, olho azul e cabelo ruivo, Jackson, aos 17 anos, já na América independente, meteu-se a estudar Direito em Salisbury na Carolina do Norte. Era um estudante trabalhador que, ainda assim, conseguia arranjar tempo para vida boémia estoirando, rapidamente, a pequena herança que lhe fora deixada pelo avô irlandês.
Tornou-se advogado e foi nomeado procurador da República em Nashville, na fronteira oeste do Tennessee. Juntou-se com Rachel Robards, uma mulher casada da sociedade local, e fez por aí carreira política. Foi eleito representante e depois senador do novo Estado; mais tarde foi juiz do Supremo Tribunal do Tennessee.
Mas o sucesso da sua carreira política vai devê-lo ao seu carisma como chefe militar, na qualidade de Comandante da Milícia do Tennessee, na segunda guerra com os Ingleses, em 1812-1815. Jackson comandou as tropas na batalha de New Orleans, decisiva para a paz e para a vitória americana; e em 1817-1818, foi ele quem esteve à frente da expedição que levou à anexação da Flórida.
Detestava os ingleses, que culpava pela morte da mãe e dos irmãos. Em 1824 candidata-se às eleições presidenciais e sai vencedor no sufrágio popular, mas sem maioria absoluta no colégio eleitoral. Perante esta situação, e seguindo a Constituição, o Presidente passava a ser eleito pelo Congresso, onde cada um dos 24 Estados tinha um voto. E aí, houve um acordo secreto entre John Quincy Adams (que ficara a seguir a Jackson no voto popular e no colégio eleitoral) e Henry Clay, para evitar a “erosão democrática”. Adams teve 13 votos dos 24, o que lhe deu a maioria absoluta no Congresso e a vitória na eleição. E nomeou Clay Secretário de Estado naquilo a que Jackson chamaria “the corrupt bargain”.
Em 1824, dos 10 milhões de americanos, votavam menos de meio milhão; as mulheres, os índios, os escravos, não votavam, e dos homens brancos votavam apenas os proprietários com mais de 21 anos. Só o Vermont, o New Hampshire e o Kentucky faziam excepção a esta regra.
Porém, em 1828, a maioria dos Estados já dava direito de voto aos brancos maiores de 21 anos, incluindo não-proprietários e a alguns negros livres e proprietários. Votavam agora o triplo dos eleitores. E Jackson ganhou a eleição.
Eleito presidente, sacralizou um conceito quase rousseauniano de vontade geral do povo, o legítimo representante da soberania da nação, e do Presidente como e intérprete da vontade popular. A sua presidência foi marcada pelo populismo e pelo nativismo identitários que, ao modo do tempo, excluíam do povo os índios e os escravos. O Indian Removal Act, de 1830 ordenou a deportação de tribos índias para Oeste, deixando as terras melhores para os colonos. E muitos índios morreram nesse “Trilho das Lágrimas”.
Outros tempos, outros modos …
Hoje o identitarismo jacksoniano traduz-se diferentemente: o “racista e supremacista branco Donald Trump” passou de 8% do voto afro-americano em 2016, para 13% em 2020 e para 20% em 2024, o que foi decisivo no swing States, especialmente no Wisconsin. O mesmo se passou com os latinos: em 2016 Trump recebeu 28% do voto latino, em 2020 32% e em 2024 45% (sendo que, como não podia deixar de ser, entre os “machos latinos” a cota de Trump seria ainda mais alta – 54%).
No tempo de Andrew Jackson o populismo excluía explicitamente do povo os escravos, os índios e as mulheres. As mulheres não tinham direitos políticos, os índios eram escorraçados das suas terras e os escravos negros não tinham direitos civis nem políticos.
Era uma herança dos Founding Fathers, que seriam, em terminologia marxista, “grandes agrários” e escravocratas (ao contrário de Jackson, que era filho de imigrantes pobres e de outra condição). Mas os Founding Fathers podiam ser proprietários de plantações na Virgínia e podiam ter escravos, mas não deixavam de ser os libertadores do povo americano do “colonialismo inglês” e os pioneiros das revoluções constitucionais.
Entre os pais fundadores havia uns “mais à esquerda”, como Thomas Jefferson, que gostariam de alargar a participação popular; e outros “mais à extrema-direita”, como Alexander Hamilton e James Madison, que achavam que, em algumas constituições estaduais, já se tinha ido longe demais no alargamento do direito de voto e que se justificaria alguma “erosão democrática”.
Era o caso de New Jersey que, no artigo 4.º da Constituição, dava direito de voto a todos os maiores de 21 anos que tivessem de seu o equivalente a 50 libras, independentemente do sexo ou da cor da pele. A benesse acabaria em 1807 e o voto voltaria tranquilamente ao recato do clube exclusivo dos “white male citizens”. Só em 1870, depois da Guerra Civil, passariam os homens negros americanos a ser, por lei, cidadãos de pleno direito. As mulheres, independentemente da cor da pele e do pé de meia, teriam de esperar por 1920 para poderem votar.
Jefferson, o mais à esquerda destes Founding Fathers, tinha para cima de uma centena de escravos na sua propriedade de Monticello – cozinheiros, pedreiros, sapateiros, carpinteiros. Era um homem rico, cultíssimo, grande aficcionado de livros e viagens, que deixou recordações e marcas inesquecíveis em todos os que o conheceram. É ele o autor, com Benjamin Franklin, da famosa frase da Declaração da Independência: “Todos os homens são criados iguais, dotados pelo Criador de certos Direitos inalienáveis, entre eles a Vida, a Liberdade e a procura da Felicidade”
George Washington, no seu testamento de 1799, dispôs que os escravos que tinha em Mount Vernon fossem libertados. Eram 123 e foram emancipados no dia 1 de Janeiro de 1801. Os doentes e os velhos que não pudessem trabalhar seriam sustentados pela herança.
Jefferson não deixou quaisquer disposições sobre a libertação dos seus escravos, sobre aqueles que, tendo sido criados iguais, tinham sido captivados… e assim permaneceriam, ao serviço da sua família. Já contribuíra suficientemente para o combate à “erosão democrática” com uma frase viral. Era esse o seu testamento e não precisava de outro.