“Deus está morto”. Assim sentenciou Nietzsche, determinando a substituição da tradição e do conhecimento acumulado ao longo de gerações pela “razão” e pelo conhecimento imediato a que cada um consegue ter acesso.

A morte de Deus pode ter sido o primeiro passo para a revolução cultural do último século e meio, mas não ficou completa sem a morte do Homem. Este duplo assassinato foi essencial para a implementação do pensamento marxista, coletivista e progressista.

Depois da morte de Deus e da sua substituição pelo progressismo imposto pelos bons pensadores a título de racionalismo, a natureza humana era o obstáculo que ainda permanecia entre o mundo do indivíduo livre e o admirável mundo do Homem novo.

É à fase final dessa morte que assistimos hoje, em várias dimensões que passo a analisar.

A morte da ambição

Apesar de constantemente maldita, a ambição é das características da natureza humana que sempre fez avançar  o mundo. A ambição de ser melhor, a ambição de se valer a si próprio, a ambição de querer mais para si e para os seus.

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Mas esta ambição não serve os interesses dos coletivistas, dos planeadores de vidas alheias, daqueles que dependem da dependência dos outros. Não. É preciso matar a ambição. É preciso que todos se acomodem ao conforto de viver com muitas garantias e sem nenhuns objetivos.

O emprego garantido no Estado ou a remuneração mínima no privado que o Estado autoriza. Mas não mais do que isso.

Assistimos, por isso, a subidas imparáveis do número de funcionários públicos, o conforto supremo de saber com o que se pode contar. Nem com mais, nem com menos.

Para aqueles que o Estado ainda não conseguiu absorver, temos a contratação coletiva. Para que não restem quaisquer resquícios de ambição, de diferenciação, de individualidade.

Ao mesmo tempo, matamos tudo o que cada um possa fazer para, à margem do aconchego do colo estatal, manter alguma autonomia, alguma ambição.

Foi assim com o alojamento local. Se bem nos recordarmos, o AirBNB surgiu numa lógica de partilha de casas. Seja porque o proprietário foi de férias ou simplesmente porque tem um sofá livre.

E aí surgiu a regulação. O primeiro incentivo a que todos se cinjam ao conforto do seu emprego garantido e não queiram ganhar mais.

Mas alguns resistiram. E se se resiste à regulação, já se sabe qual o passo seguinte: a taxação. E se, ainda assim, houver ambição que resista, resta a proibição (ou regulação com efeito prático semelhante).

Ao mesmo tempo que se mata uma das formas que muitas famílias podiam aproveitar para ganhar algum rendimento e ajudar a pagar a prestação das suas casas, cria-se um novo apoio para quem tem crédito à habitação.

O eterno conforto de receber umas canadianas de quem nos partiu as pernas.

Assim que todos os pequenos proprietários estiverem impedidos de exercer a atividade, podemos atacar os grandes grupos, os únicos que conseguem sobreviver à asfixia regulatória.

Foi assim com o Uber. Uma atividade que era exercida em part-time por muitos portugueses, das mais variadas áreas profissionais. Mas que também não escapou à apertada malha da regulação.

Hoje sobrevivem as empresas e queixamo-nos que os condutores não falam português e que se multiplicam os esquemas de falsificação de documentos.

E se vendermos os nosso bens em segunda mão no OLX, também não escaparemos ao controlo e ao esbulho fiscal.

Afinal, a ambição é um pecado que espreita em todos os recantos da internet. Felizmente o Deus-Estado é omnipresente e omnipotente.

A morte da razão

É verdade que o racionalismo foi um dos motivos para a morte de Deus. A promessa da substituição da fé pela razão.

Mas o que vemos hoje é um ataque à razão. Não se pretendia verdadeiramente dar lugar à razão, mas substituir a fé cristã pela crendice progressista.

Hoje a razão é constantemente atacada.

“Intelectuais” de renome, “líderes” políticos e académicos vários são incapazes de dizer “o que é uma mulher”. Quem se atrever a invocar a ciência, a genética ou a biologia (ciências do domínio da razão), tem a cabeça a prémio.

Depois de anos de campanhas contra a obesidade, pela alimentação equilibrada, pela adoção de estilos de vida saudáveis, ai de quem aponte a obesidade como um problema. Deixou de ser uma doença, para ser uma opção de vida. O exercício físico passou de hábito de vida saudável a masculinidade tóxica. Aliás, o exercício físico estimula a autossuperação, o estabelecimento de objetivos e o esforço para os superar. Obviamente só podia ser um alvo a abater.

A matemática é racista, a biologia é sexista e a medicina é gordofóbica. Séculos de evolução científica, de primado da razão, são deitados borda fora em nome da agenda progressista.

Deus morreu. A razão venceu. A razão jaz morta. Paz à sua alma.

A morte da família

Desde tempos imemoriais, as sociedades, com todas as diferenças que existem entre si, organizaram-se em famílias.

Monogâmicas ou poligâmicas, mais ou menos igualitárias, mais ou menos estáveis, entre pessoas do mesmo sexo ou de sexos diferentes, motivados por motivos passionais ou outros. As famílias sempre foram a unidade de organização básica da sociedade e a primeira rede de apoio do indivíduo. A principal forma de organização voluntária e a primeira proteção contra o coletivismo.

A família protege em momentos de necessidade, a família transmite valores tradicionais, a família permite a acumulação intergeracional de riqueza e de propriedade.

Em suma, a família simboliza tudo aquilo que o progressismo radical quer destruir. Importa, por isso, matar a família. Urge a criação de um admirável Mundo Novo, sem famílias, sem vínculos. Um mundo de indivíduos isolados e desconectados, que facilmente caem na malha da dependência do Estado e em que os jovens podem ser facilmente doutrinados para o bom-pensamento progressista.

A morte da comunidade

A seguir à família, as comunidades locais foram, historicamente, a estrutura de organização da sociedade. Grandes cidades surgiram de pequenas comunidades, numa base de colaboração voluntária. Por fins comerciais ou de solidariedade, as comunidades sempre se valeram a si próprias e souberam encontrar soluções para os seus problemas.

Mas o voluntarismo e a independência não são compatíveis com o coletivismo e o estatismo. Há que matar as soluções da comunidade (na saúde, na educação, na segurança social) e substituí-las de forma irreversível por soluções estatais, centralizadas e distantes do indivíduo. Tão grandes, complexas e deficitárias que sejam impossíveis de reverter para as velhas soluções comunitárias.

A morte da natureza humana está em curso e explicará, em boa parte, o desafio da saúde mental que vivemos.

Pessoas sem ambição, sem objetivos, sem motivação. Pessoas em permanente luta contra os próprios pensamentos, contra as próprias convicções, que vão contra a agenda vigente. Pessoas isoladas, sem suporte familiar nem comunitário.

Pessoas em luta contra a sua natureza dificilmente serão pessoas saudáveis.

Se Deus está morto, o Homem está moribundo, à espera da caridosa eutanásia.