“Dos diferentes tipos de regimes surgidos no curso da história da humanidade, desde monarquias e aristocracias até as teocracias religiosas e as ditaduras fascistas e comunistas deste século, a única forma de governo que sobreviveu intacta até o fim do século XX foi a democracia liberal.”
Fukuyama, 1992, p. 80

Mais de 5 milhões de Portugueses não terão votado nas últimas eleições legislativas, tendo a taxa de abstenção atingido os 51%,4. A mais alta de sempre.

Nas primeiras eleições desta era Democrática a abstenção fixou-se nos 8%. Posso até embarcar na polémica teoria sobre a fiabilidade dos cadernos eleitorais (serão menos eleitores) mas o facto é que é o número de abstencionistas tem vindo a subir. E para aqueles que insistem em relativizar o problema da abstenção, convém considerar o seguinte:

A 6 de Outubro de 2019 mais de 200 mil pessoas deram-se ao “trabalho” de sair de casa para ir votar em branco ou nulo. Um manifesto claro de que – ou não se reviam em nenhum dos partidos, ou que estão saturados deste regime. Mais de 200 mil votos! É como se toda a população da Vila de Cascais votasse branco ou nulo nas últimas eleições. Estes mais de 200 mil votos dariam lugar a 9 lugares de Deputado à Assembleia da República. Mais representação do que partidos, à data de hoje, que ocupam a Casa Mãe da Democracia desde 1974.

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Uma coisa é não gostarmos de políticos e da política. Outra, totalmente diferente, é estarmos saturados do sistema de governo, da Democracia. Exactamente, a mesma Democracia do 25 de Abril de 1974. Da Paz, da Liberdade, da Prosperidade, estará em risco de se perder?

E quando chegamos a este estado de saturação os sinais de alarme devem soar. Ou deveriam soar…

Tenho para mim que a desilusão, a desmotivação, a desacreditação, mas acima de tudo a ausência de esperança, face a um farol de orientação colectiva têm sido um dos factores (senão o factor principal) da ascensão de extremistas ao poder em Democracias dito consolidadas um pouco por todo o mundo. Há quem diga que Portugal estará imune desse desaire, por sermos, como diria Miguel Torga: “uma coletividade pacífica de revoltados.”

Será mesmo assim? A abstenção terá outra varáveis de análise que não a desmotivação com os partidos, com o sistema?

Ou, será que existem outros indicadores em Portugal, em linha com o que tem vindo a acontecer noutras Democracias, ditas consolidadas, e hoje liderada por populistas? Sendo que, mesmo liderada por “populistas”, não deixam de ser Democracias, na medida em que estes foram democraticamente eleitos.

Dito isto, coloca-se a questão: até que ponto podemos dar por garantido este bem-estar social, quando vivemos num mundo de contrastes e desigualdades, e cada vez mais global e globalizante? Até que ponto está a nossa Democracia em falência? O 25 de Abril ameaçado?

A história da Humanidade, desde os seus primórdios, tem sido uma história de conflitos. Daí a questão suprema sobre o sentido e o destino do homem e da Humanidade. Daí, a organização social de uma comunidade ter sido sempre um dos grandes desafios da Humanidade. Das sociedades de bandos aos Estados Nação muitos foram os filósofos, economistas e por último os sociólogos que se dedicaram a este tema em todo percurso da história.

Entre os vários pensadores que se debruçaram sobre este dilema (sentido e destino da Humanidade) destaque para Hegel que visionava o fim destes conflitos, através de um Estado Liberal ligado a uma economia de mercado, enquanto, por sua vez, Karl Marx preconizou o comunismo, com uma sociedade sem classes. Capitalismo versus Comunismo.

Quando Francis Fukuyama determinou o fim da História no célebre “Fim da História e o Último Homem” foi mal interpretado por muitos pensadores, que confundiram o fim da História com o fim da Humanidade ou, o princípio do fim do mundo. Nada mais errado. Fukuyama pretendia ilustrar exatamente o contrário.

O “fim da História” não significaria o fim da história social ou fim dos acontecimentos naturais como vida ou morte, mas sim, o fim de um ciclo de conflitos que vinham caracterizando a história da humanidade, através de um modelo de organização social que providenciaria, com base, numa sociedade tecnológica, todas as necessidades humanas, de forma próspera e harmoniosa.

A Democracia, pois então.

Defina-se Democracia, a Liberal, como um sistema de Governo assente na vontade popular através do voto e que garante as liberdades individuais, a liberdade de expressão (imprensa livre) e liberdade de culto e que traduzem a vontade popular em políticas públicas.

O Comunismo de Marx começava a perder espaço político para a democracia e o capitalismo. A ex URSS encontrava-se em fase de desagregação, com vários países do Leste Europeu a aderirem a sistema democráticos e ao capitalismo internacional. O modelo capitalista, a democracia e o liberalismo económico de Hegel aparecem como a melhor alternativa de desenvolvimento para os países à escala global.

Em 1970 eram apenas 35 as democracias eleitorais em todo o mundo. No início do século XXI, quase 120. Mesmo não se tendo afirmado à escola global era expectável que com o decorrer do tempo as democracias liberais viessem a estabelecer-se nos restantes países, enquanto modelo de organização social viável junto de países menos prósperos e organizacionalmente menos desenvolvidos.

Mas a história da humanidade nunca foi estanque. Se o 11 de Setembro, a crise económica de 2008 e uma série de ataques terroristas em solo europeu fizeram soar os sinais de alarme sobre a estabilidade no mundo ocidental, o êxito do Brexit no Reino Unido e a ascensão de líderes populistas em democracias consolidadas (Trump, Orban e Bolsonaro) vieram colocar em causa a sustentabilidade das democracias no mundo.

Nos últimos anos a Europa tem vivido em sobressalto com a possibilidade da ascensão de partidos de extrema-direita ao poder.

O que se passa com as Democracias no mundo ocidental ?

Yascha Mounk escritor, académico e conferencista explica a razão da erosão das Democracias no Mundo Ocidental, assente em 3 fatores:

Soma zero. Como soma zero Mounk define a relação entre o fraco crescimento económico nas democracias ocidentais e consequente menor rendimento dos cidadãos a partir de finais de 90, em contraponto com os benefícios para os imigrantes ou minorias étnicas à custa do contribuinte, sic: “ À medida que os cidadãos foram sendo tomados por uma ansiedade profunda quanto ao futuro, começaram a olhar para a política como um jogo de soma zero – um jogo em que qualquer benefício para os imigrantes ou para as minorias étnicas será conseguido à sua custa.”

Imigração. Mas se os nacionais (ou a maioria étnica nesses países) viam a política como soma zero, as ditas minorias, após décadas de migração e de activismo social, viram na política a soma da igualdade, exigindo mais direitos; nomeadamente, à nacionalidade e à representatividade. Se por um lado parte da população aceita, outra sente-se ameaçada. Nesta medida, o Multiculturalismo e a Diversidade Étnica têm sido encarados como ameaça na generalidade dos países ocidentais. Quando Orban foi eleito na Hungria tinha como principal bandeira a promessa de não permitir a entrada de mais imigrantes no seu país. Foi eleito com maioria. Trump tinha como um dos seus maiores trunfos durante a campanha a construção de um muro por forma a conter a entrada de mais imigrantes no seu país. Em França, há muito que a Frente Nacional de Marine Le Pen tem vindo a ganhar terreno. Na Áustria, Holanda, Finlândia e Alemanha os partidos de extrema-direita têm vindo a ganhar terreno de forma galopante, em nome do povo, do Nacionalismo…

Social Media. A Internet, e em particular as redes sociais nos últimos 15 anos, alterou profundamente a relação na comunicação para as massas (anteriormente dominadas por elites politicas e financeiras). Fácil, barato e acessível à escala global. Se por um lado pode ser benéfico enquanto veículo para mobilização de uma causa, também tem sido uma mina para os instigadores contra as forças de ordem, ou um veículo de excelência para as fake news.

Com base nestas premissas seria interessante verificar qual a situação actual de Portugal perante estes cenários, apontados por Mounk.

Logo à partida confirmamos o factor soma zero. De facto, desde o início do milénio, fruto do parco crescimento económico, o rendimento médio do cidadão em Portugal encontra-se estagnado, chegando mesmo a regredir com a assistência financeira em 2011, após a banca rota do governo Sócrates.

Por outro lado, paira em alguns sectores da sociedade o sentimento de alguma injustiça social na distribuição da pouca riqueza criada. Parte para a banca (com custos de milhares de milhões de euros para o contribuinte) mas também para outras minorias à custa do contribuinte.

A última consideração (redes socais) assenta com a segunda. Basta lembrar a forma como um vídeo do incidente no bairro da Jamaica se projetou de tal forma, culminando em uma semana de guerra urbana na Área Metropolitana de Lisboa: com veículos vandalizados, autocarros e imóveis destruídos, e a iminência de guerra campal entre agentes da PSP e manifestantes.

Que respostas?

1º Maior crescimento económico e maiores rendimentos para os cidadãos. Não há desenvolvimento social e prosperidade sem crescimento económico. E o crescimento económico não garante somente o desenvolvimento social, através de um Estado Social forte, mas é também garante de paz social, com menos desigualdades. É interessante (do ponto de vista politico) apregoar que temos de ser socialmente mais justos, através da distribuição da riqueza, quando a mesma não é devidamente criada.

Segundo os especialistas, Portugal deveria crescer no minino 3% ao ano para garantir estas condições de desenvolvimento social. Caso contrário, somos obrigados a contrair empréstimos, aumentando a divida externa. Apostar cada vez mais nas exportações deveria ser um desígnio nacional. Para além da dimensão económica, a dimensão simbólica que puxa pelas nossas empresas que levam a todos os 4 do mundo o que de melhor se faz em Portugal.

Este, a par do problema do inverno demográfico, deveria ser uma das grandes ambições de Portugal nas próximas décadas. Curiosamente, apenas ao de leve foi tido em discussão durante a última campanha eleitoral.

2º Imigração. Em Portugal dá a sensação de estamos sempre uma década atrás face às diversas dinâmicas de evolução da Humanidade quando comparados com o resto do mundo ocidental.

O sentimento de ameaça pelas minorias — de diversos cidadãos em muitos países do mundo ocidental, sobre o seu modo de vida, tem sido um manancial para a génese dos extremos. Em particular dos da direita.

A dimensão do nacionalismo, associado à entidade, tem sido a fonte da ascensão dos ditos populistas na América do Norte e na Europa. De Trump nos Estados Unidos (com a promessa construção de muro para evitar a entrada de mais imigrantes), ou Orban na Hungria eleito para o mesmo efeito, ou Le Pen, que sucessivamente tem vindo a ganhar mais adesão à sua causa nacionalista, ou demais partidos de extrema-direita um pouco por toda a Europa do Norte (a Alemanha tem um problema complicadíssimo para resolver com a imigração).

Portugal, vive o paradoxo. É, ainda, um El Dourado dada a sua diversidade étnico/cultural, tido por tolerante com os seus imigrantes e detentor das melhores práticas em politicas de imigração.

Mas hoje, essa estabilidade e paz social está ameaçada, não pelos partidos de extrema-direita como acontece no restante mundo ocidental mas justamente pelos partidos de extrema-esquerda que apelidam a sociedade de racista, fascista e xenófoba, abrindo uma caixa de pandora passível de muitos desfechos. Um paradoxo único no contexto da ordem Internacional. Voltarei a este assunto no próximo artigo.

Social media – sendo certo que os responsáveis do Facebook e Twitter têm vindo a tomar medidas no sentido minimizar a acção de alguns grupos de ódio que recorrem a estes instrumentos de comunicação importa também um maior sentido do crítico do recetor sobre as mensagens.

Mas a Democracia em Portugal não se encontra em causa apenas por estas questões. Vai morrendo com a degradação dos serviços públicos, com a desacreditação das instituições do Estado, quando mais de 400 agentes da PSP são agredidos num espaço de 6 meses ou, quando todo o Sistema de Protecção Civil é posto em causa em Pedrógão, por não garantir a integridade e segurança dos cidadãos.

Repetindo Torga: “O país ergue-se indignado, moureja o dia inteiro indignado, come, bebe e diverte-se indignado, mas não passa disto. Falta-lhe o romantismo cívico da agressão. Somos, socialmente, uma coletividade pacífica de revoltados”.

A verdade é que a nossa Democracia encontra-se em perigo e a definhar, urgindo um novo rumo que terá de se refundar em novas políticas e novos políticos. Porque não há Democracia sem partidos.

Infelizmente, o Ser Humano apenas tende a valorizar o que de mais valioso tem quando o perde.