A próxima eleição presidencial americana vai ser uma das mais disputadas e decisivas da história dos Estados Unidos dos últimos cem anos. Há antecedentes de eleições deste tipo: em 1932, em plena Depressão, um conservador liberal clássico, Herbert Hoover, enfrentava um patrício progressista, social-democrata, F. D. Roosevelt; em 1960, Richard Nixon batia-se contra J. F. Kennedy; e em 1964, Lyndon B. Johnson corria contra a agenda de direita nacional-conservadora de Barry Goldwater. Curiosamente, dos escombros da derrota de Goldwater, nasceria o movimento cultural que ira mudar a América, com Reagan.

Em 1968 e 1972, Richard Nixon venceu claramente os seus opositores democratas, em eleições que tiveram já um claro sentido político-ideológico. O curso da “vaga conservadora” foi interrompido pelo Wattergate, em 1973-1974, e o pastor liberal e bom rapaz Jimmy Carter venceu em 1976.

Depois, com as derrotas sucessivas no Vietname e na África Lusófona e a crise no Irão e no Afeganistão, emergiu, com Ronald Reagan, a reacção nacional-conservadora que levou à vitória americana na Guerra Fria e ao fim da União Soviética, já com George W. Bush em 1991.

Finda a Guerra Fria, dois mandatos democratas de Bill Clinton marcavam o depois do “fim da História”. Mas em 2000, George W. Bush vencia Al Gore, após um complexo e disputado processo de contagem e recontagem na Flórida.

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Em 2008, o herói de guerra John McCain perdeu para Barak Obama, graças à crise de 2007-2008, e em 2012 Barak Obama bateu o republicano mórmon e liberal Mitt Romney. Em 2016, para surpresa e escândalo do establishment financeiro, académico e mediático, Hillary Clinton perderia para Donald Trump, um ET do mundo político.

De um olhar sobre este século de vida eleitoral americana ressaltam padrões de continuidade mas também de interrupção e aniquilação de tendências e de mudança de temperatura e de tensão ideológica.

Perante a prosperidade dos anos 50 de Eisenhower, os temas económico-sociais da Grande Depressão, que dominaram os anos trinta, foram substituídos no pós-guerra pelas questões internacionais, com a ameaça soviética e a Guerra Fria. Nos anos 60, foram as questões raciais ou identitárias, com a luta pelos Direitos Cívicos da comunidade negra, a reacção sulista, a violência nas cidades do Norte, como Chicago e Detroit.

Curiosamente foi Lyndon Johnson, um texano conservador – e não Kennedy –, quem acabou por assinar a Lei dos Direitos Civis em 1965. Com isso, os Democratas perderam o Sul, e os Republicanos ganharam-no, com a Southern Strategy de Richard Nixon, que também beneficiou com as reacções da classe média e da classe trabalhadora branca à violência radical pré-eleitoral. Fosse como fosse, o voto nos Estados Unidos tornara-se diferente, menos classista e mais étnico ou identitário. E brancos, latinos, negros, judeus, americanos de origem asiática, imigrantes mais recentes, todas estas categorias, ligadas à identidade, são hoje variáveis determinantes na sociologia eleitoral.

Com um passado mais depressa democrata em política e liberal em costumes, Donald Trump apareceu bruscamente como um republicano que saltava em defesa das causas identificadas com a direita: nacionalismo político-económico, defesa dos valores religiosos e familiares, defesa da vida, defesa da hegemonia norte-americana (embora estranhamente combinada com algum isolacionismo), contenção do avanço político-económico da China, desconfiança do multilateralismo e das organizações internacionais e combate à correcção política e ideológica.

Uma agenda assim trouxe-lhe, mais que a oposição, a raiva obsessiva da maioria da comunidade dos opinionmakers e dos jornalistas na América. As posições radicalizaram-se rapidamente, polarizadas em volta das chamadas questões fracturantes. A sociedade norte-americana, que tinha uma tradição de equilíbrio e convívio institucional entre os dois partidos principais extremou-se. Para isso o principal factor não foi só o aparecimento de Trump, mas a resistência de Trump à ofensiva da esquerda radical, em nome de uma “América profunda”.

E Trump não se tem ficado, nem no conteúdo, nem no modo, respondendo à brutalidade com a brutalidade, à chacota, com a chacota, ao insulto com o insulto. E os seus inimigos não perdoam e exploram até ao limite o que ele diz ou faz. E até o que não disse nem fez.

A menos de três meses do dia da eleição, Joe Biden seleccionou finalmente a sua Vice-Presidente: já tinha dito que seria uma mulher não branca, seguindo assim a moda das quotas e da inclusão de um elemento com raízes na comunidade negra americana.

Biden, um católico moderado, quis assim responder aos anseios da ala radical hoje tão influente no Partido Democrático. É já uma tradição nas eleições presidenciais, desde que os partidos passaram a ter linhas “mais ou menos à direita” no Partido Republicano e “mais ou menos à esquerda” no Partido Democrático, que estas compensações se façam: em 1960, J. F. Kennedy –  um católico da Nova Inglaterra, da elite social progre – foi buscar para Lyndon Johnson, um protestante do Texas, de origens modestas, para lhe cobrir as áreas conservadoras. John McCain, um patrício republicano moderado, foi buscar em 2008 a direitista Sara Palin, para lhe cobrir a ala direita mais popular e populista do Partido Republicano.

Ao escolher Kamala Harris, uma progressista de origem índia e jamaicana, Biden segue a tradição instituída.

Ora os Democratas, apesar da estridência da sua ala radical, sabem que a maioria dos seus eleitores não embarca facilmente em radicalismos de rua ou em campanhas como a destruição de estátuas e símbolos nacionais americanos. Talvez por isso nas eleições parciais para os Representantes em 2018 tenham prudentemente escolhido candidatos de perfil religioso e conservador para áreas onde as populações eram conservadoras, o que lhes permitiu ganhar a Câmara baixa. Embora a minoria radical acabe por ter uma influência e uma visibilidade desproporcionais, as questões que dividem a América, como o problema do aborto, das minorias étnico-sociais, da imigração, do uso livre de armas, dividem também o Partido Democrático.

Qual o efeito do “factor Harris” na campanha?

Biden, um político de longa experiência em negociações e transições no Congresso e na Vice-Presidência e com ligações ao mundo sindical, não tem muito que ver com a onda radical de oposição a Trump, com a violência de antifas e ocupas a pretexto do “Black Lives Matter” ou com a retirada de financiamento à Polícia. Mas também não a condenou formalmente. Depois de alguma indecisão, a decisão foi o relativo silêncio.

Mas o estado-maior do Partido, que tem um grande controlo sobre as estruturas militantes, já tinha percebido que um candidato radical, como Bernie Sanders, não tinha chances de bater Trump, nem depois da pandemia. Era demasiado à esquerda em matéria económico-social. Assim, mesmo sendo mais combativo que Biden e suplantando como orador o actual candidato, foi levado à desistência, tal como Warren, Kamala, e outros radicais. Todos e todas desistiram e todos e todas apoiaram Biden, justificando-se pela derrota do “mal maior” – Donald Trump.

Com a maior tranquilidade, as feministas, que tinham reagido muito mal às histórias de assédio de Biden, ou à denúncia de cumplicidade com os segregacionistas do Sul, evocada por Kamala Harris, varreram os pecadilhos do candidato para baixo do sofá e endossaram-no.

Trump, que antes do coronavírus, parecia ter a reeleição garantida dado o estado da Economia, ficou com o handicap de estar no poder no meio do ataque viral e da crise económica. Não se pode dizer que teve uma gestão exemplar da crise sanitária, nem da vaga de violência desencadeada pela morte de George Floyd. É claro que, numa República Federal como os Estados-Unidos, grande parte dos poderes e decisões ligadas à pandemia e à ordem pública são da responsabilidade dos governadores dos estados e dos mayors das cidades; e os democratas não deixam de fazer o possível para prejudicar e culpar o Presidente.

Vale a pena lembrar que a campanha contra Trump arrancou logo após a sua eleição com as acusações de que ele era um peão da Rússia de Putin. Curiosamente, vários oligarcas próximos de Putin tinham dado generosas contribuições para a Fundação Clinton e o próprio ex-presidente recebera consideráveis compensações por conferências em Moscovo, mas disso poucos falaram. De resto, as investigações e o relatório Mueller ilibaram Trump.

Trump nunca escondeu que não via a Rússia como um inimigo, tal como no pós-Guerra Fria nenhum Presidente americano vira a Rússia como inimigo. Quanto à NATO, esforçara-se por fazer com que os europeus contribuíssem para a própria defesa, no cumprimento das regras do Tratado.

Não restam dúvidas de que Trump é um ET político e faz tudo para o parecer: há uma brusquidão de atitudes e uma não contenção nos seus constantes tweets, e no modo agressivo e pouco diplomático com que lida não só com os seus adversários mas com a própria burocracia do State Department e da comunidade de inteligência. Mas como observa Dimitri Simes num artigo da National Interest, a eleição não pode ser vista como um “referendo sobre Trump e a sua personalidade”; deve também ser olhada quanto às consequências que uma eventual derrota de Trump pode trazer. A eleição do team Biden-Harris para a liderança do que ainda é a maior potência mundial, no tempo mais perigoso para o mundo desde há muitas décadas, será também um factor de alto risco.

Segundo uma recente sondagem, para um grande número de americanos a idade e a saúde mental de Biden indiciam que, caso Biden vença a eleição, Harris poderá ter um papel bastante mais importante na política dos Estados-Unidos que o comum dos Vice-Presidentes e num futuro próximo.

Os republicanos qualificam Kamala Harris como uma “esquerdista radical” que irá aumentar impostos, controlar o uso de armas, ser condescendente para com o crime e os antifas e assumir posições radicais nas “questões fracturantes”. E perguntam-se se, além do “género e da raça”, a candidata a Vice-Presidente trará algum contributo em matéria económica e de política internacional. Outros analistas consideram a escolha de Biden uma “boa-nova” para a equipa Trump-Pence, dando aos adversários a coloração radical que, com Biden, os Democratas quiseram evitar.

De qualquer modo, a decisão final de 3 de Novembro vai estar dependente do estado da epidemia e do estado da Economia. E do modo como os eleitores indecisos pesarão a responsabilidade da Administração Trump pela crise, contra os riscos e expectativas de uma América governada, a curto prazo, por Kamala Harris e os seus compagnons de route.