Como é costume em Portugal, uma decisão polémica nos Estados Unidos da América provocou indignação e exultação entre a classe política pátria, em particular a canhota. Indignação pela inépcia das instituições americanas em comparação com as lusas, e exultação por permitir aos nossos reafirmar a supremacia do iluminismo à portuguesa e reconfirmar, à população que tão generosamente o sustenta, a sorte de não terem nascido estado-unidenses.

Desta vez foi a sentença do Tribunal Supremo no caso Dobbs v. Jackson Women’s Health Organization a que provocou uma onda de solidariedade e preocupação, para além da condenação virtualmente unânime de uma suposta perda de direitos fundamentais nos EUA. O nosso Primeiro tuitou a sua decepção pela possível criminalização de uma questão de consciência política e relembrou que os estados devem respeitar os direitos das mulheres. A sua ex-parceira, Catarina Martins, alertou para o final do direito ao aborto seguro e, também ela, lamentou o recuo nos direitos das mulheres. No resto da esquerda as reacções afinaram pela mesma ladaínha dos direitos das mulheres, a compararação a um regresso ao esclavagismo na cabeça de quem escraviza a população com seis meses de corveia todos os anos, ou a inevitável culpa do “trumpismo”. Por último o partido IL, que não perde uma oportunidade para exclamar “liberal” como quem diz “amen”, também fala de retrocesso de direitos e, como não podia deixar de ser, recusa que em Portugal se enverede por este tipo de recuos.

No que diz respeito ao aborto em si, é uma das questões mais complexas com que as sociedades, em particular as que se dizem liberais, se deparam, pois obriga a uma escolha irremediável entre entre dois direitos irreconciliáveis quando a gravidez não é desejada: o direito à vida do filho e o direito à liberdade da mãe. Como só existem dois momentos verdadeiramente transcendentais na gestação – a concepção e o nascimento – isso determina que as pessoas com opiniões mais veementes sobre o assunto também sejam as que coerentemente defendem as posições mais extremas. Porque o que está no meio é um contínuo de desenvolvimento de um ser humano dentro do útero de outro ser humano, que a ciência pode ajudar a compreender, mas sobre o qual não pode emitir um juízo de valor.

No entanto, todas as sociedades necessitam uma dose de hipocrisia para sobreviver e a maioria das pessoas consegue tolerar uma solução intermédia que permita, senão resolver a questão satisfatoriamente, pelo menos a convivência entre todos. O problema é que, ao ser sempre uma solução provisória, esse consenso estará em permanente tensão como consequência dos valores que os indivíduos interiorizam, das circunstâncias sociais e económicas e das possibilidades que a tecnologia ofereça. Mas a política moderna faz-se de soundbytes, como ficou bem patente na caricatura da unanimidade lusa. É evidentemente um tema em que, salvo a extrema-esquerda, ninguém quer verdadeiramente tocar. Foram necessários dois referendos e quase uma década para as pessoas votarem o que se esperava delas e ajustar a legislação ao que se fazia lá fora. A partir daí o caso em Portugal ficou praticamente encerrado.

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Nos Estados Unidos o debate continuou em aberto. Em grande parte porque Roe v. Wade condicionou as soluções políticas. Nos EUA, com esta decisão em 1973, o aborto que era praticamente ilegal em quase todos os casos e quase todos os sítios, passou de um momento para o outro a ser legal sem restrições no primeiro trimestre e com restrições no segundo. Sobre a recente decisão do Supremo, vou repetir o óbvio: com a revogação não se proibiu o aborto nos Estados Unidos; devolveu-se aos estados a potestade de legislar completamente sobre o assunto. Julgo que é importante repetir este facto sem usar o tom fúnebre com que os meios de comunicação o fizeram. Nos Estados Unidos, por um lado, a maioria da população (56%) acredita que a vida humana começa com a concepção e, como tal, que um feto (e presumivelmente um embrião ainda que isso não tenha sido perguntado) é uma pessoa com direitos. Por outro, uma maioria ainda maior, de quase três quartos (72%), pensa que a decisão de abortar deve ser da exclusiva responsabilidade da mulher. Isto significa que cerca de um terço dos americanos defendem simultaneamente as duas afirmações sem encontrar nisso uma contradição lógica. No fundo a imensa maioria dos americanos, independentemente da sua simpatia partidária, simplesmente acredita que o aborto deveria ser legal nalguns casos e ilegal noutros, pelo que a consequência da decisão do Supremo é simplesmente que cada estado vai tentar encontrar uma solução que agrade mais às pessoas que ali votem, solução essa que aparenta ser menos do agrado dos políticos portugueses que a teoria do recuo dos direitos que o soundbyte político regurgita na tentativa de sinalização de alguma virtude.

À confusão sobre a situação real da legislação sobre o aborto nos Estados Unidos, os políticos acrescentam a confusão sobre o significado da palavra “direito” que aplicam, segundo a sua conveniência, a dois tipos de legitimidade legal: a dos direitos naturais e a dos direitos positivos. Existem aqueles liberais, chamemos-lhe clássicos, que afirmam que os direitos dos indivíduos são naturais, isto é, inerentes ao indivíduo e anteriores ao estado, e aqueles outros liberais, admitindo que hoje em dia até o Louçã se diz liberal, que defendem que a origem dos direitos é expressa pela vontade democrática do povo (pelo menos antes de chegarem ao poder, depois passa a ter origem divina). Também nisto a maioria das pessoas não têm uma visão absoluta e aceitam a aparente contradição lógica de que os direitos sejam naturais e positivos, em simultâneo ou intercalados.

Em relação ao direito natural, a necessidade de escolher entre dois direitos fundamentais: o da liberdade da mãe e o da vida do filho implica que, quando os nossos políticos referem o recuo dos direitos das mulheres, se estão a falar de direitos naturais, para além do reconhecimento tácito de que os homens, independentemente do género, não podem engravidar, estão a ignorar o avanço nos direitos das crianças (aproximadamente metade delas mulheres também). Ironicamente, temem a via democrática e procuram amparo numa teoria de Direito Natural que não só lhes é estranha, como não lhes dá a razão.

Convenhamos, no entanto, que nas sociedades modernas existe um certo pendor para a beatificação das decisões democráticas, mesmo quando estas se sobrepõem a direitos naturais reconhecidos e partilhados pela comunidade. Ora, o que o Supremo Tribunal veio reconhecer é que o poder de legislar sobre o assunto é dos estados, algo que, sendo os Estados Unidos da América uma grande democracia, significa que a questão da legalização do aborto, quando, onde e como, voltará a ser, a partir de agora, uma decisão democrática. Portanto, a perda de direitos foi, quanto muito, uma perda de direitos naturais, com um ganho equivalente de direitos positivos. Percebo que quem defenda a despenalização quase total do aborto queira sol na eira e chuva no nabal e se esteja marimbando para o tipo de direito que o justifica. Mas um bocadinho de coerência política nunca fez mal a ninguém. Se alguém se diz profundamente democrático e, ao mesmo tempo, se queixa da perda de direitos neste caso, o meu conselho para as pessoas que o estão a ouvir, é que estuguem o passo. É que, ainda por cima, a sondagem do Pew Research afirma que 61% da população dos EUA opina que o aborto deve ser, na grande maioria dos casos, despenalizado.

Admito que é muito mais cómodo ter uma lei que garante um privilégio a que se julga ter direito, que ver-se obrigado a ter que debater e convencer o eleitorado do fundamento desse direito, mas para quem diz acreditar nas virtudes da democracia, para quem não se cansa de falar na importância da decisão democrática de cada vez que a ocasião se propicia, e para quem exalta a soberania popular quando a populaça lhe dá a vitória nas eleições, parece-me que apoiar a despenalização do aborto com um apoio a priori de quase 2/3 do eleitorado é um bom ponto de partida para não ter que andar a lamentar-se nas redes sociais sobre o retorno dos Estados Unidos a uma idade das trevas imaginária. Bem sei que os 61% não significam que a despenalização quase total do aborto (a total nunca existiu) se vá implantar em todo o território, mas é um sério óbice a que os políticos mais conservadores arrisquem uma legislação que o proíba em todos os casos, a não ser que a maioria da população assim o deseje. Se assim for, tratando-se de um direito positivo que visa um consenso, não me parece errado, é um consenso democraticamente aceite pelos eleitores desse estado. É verdade que os processos radicalmente democráticos encerram o perigo de manipulação demagógica, mas a circunstância de Francisco Louçã opinar que a decisão do Supremo pode empurrar os EUA para uma república integrista religiosa dissipa quaisquer reservas que eu pudesse albergar a esse respeito.

Os pontos de vistas expressos pelos autores dos artigos publicados nesta coluna poderão não ser subscritos na íntegra pela totalidade dos membros da Oficina da Liberdade e não reflectem necessariamente uma posição da Oficina da Liberdade sobre os temas tratados. Apesar de terem uma maneira comum de ver o Estado, que querem pequeno, e o mundo, que querem livre, os membros da Oficina da Liberdade e os seus autores convidados nem sempre concordam, porém, na melhor forma de lá chegar.