O activismo climático e anti-combustíveis fósseis está na ordem do dia no mundo ocidental — nos outros mundos ninguém quer saber disso para nada ou quem eventualmente queira não pode manifestá-lo. Nessa ordem do dia a que me refiro pontificam aqueles que invadem museus para atirarem sopas ou tinta aos quadros expostos, os que se colam a todo o tipo de superfícies para chamar a atenção, os que cortam vias públicas, interrompendo o trânsito, etc. Aqui na nossa Lisboa, os jovens activistas do clima, inquietos com um possível catástrofe climática e desejosos de pôr fim de chofre, ou a breve prazo, à utilização de combustíveis fósseis, manifestaram esses seus receios e objectivos na Escola Secundária António Arroio e também no Liceu Camões, que ocuparam e fecharam. Alguns deles falaram para os media, exigindo que os fósseis saiam do governo (sic), enquanto outros se expressaram ruidosamente na Faculdade de Letras, perturbando o normal funcionamento da mesma, o que levou o seu director, Miguel Tamen, a pedir a intervenção da polícia para os remover.
Como é natural tudo isto deu origem a vários comentários, muitos dos quais criticando as pretensões e modo de acção dos jovens manifestantes. Outros, sobretudo à esquerda, apoiaram essas manifestações, indignaram-se com a presença de polícia na universidade e desancaram Miguel Tamen, o responsável que a solicitou. A colunista do Público Carmo Afonso, uma das opinantes de esquerda, foi um pouco mais longe. Para além da inevitável zurzidela em Miguel Tamem, equiparado a um vira-casacas porque há 47 anos teria estado com outros jovens esquerdistas da época no ataque à Embaixada de Espanha e agora é o que se vê, Carmo Afonso aproveitou para criticar João Miguel Tavares, por estar, alegadamente, a atirar areia para os olhos dos jovens ao pretender compatibilizar ambientalismo e capitalismo — coisas que, para a colunista, seriam mutuamente exclusivas — e, sobretudo, para cair em cima daqueles que designou por “velhos do costume”, isto é, gente que não compreenderia os jovens activistas e que, por isso, os censurava, ridicularizava e descredibilizava.
Ora, para Carmo Afonso a forma de actuação desses jovens activistas está perfeitamente justificada. Eles “tentam fazer alguma coisa para ter um mundo melhor” e os “velhos do costume” não têm “qualquer moral” para os criticar nem “para lhes dar conselhos ou avisos”. É certo que esses “velhos do costume” já foram jovens e que a causa ambientalista não é nova, já tendo sido defendida, em Portugal, em termos muito mais cordatos. Todavia, considera Carmo Afonso, estes são outros tempos e as coisas terão mudado muitíssimo. Antes, a causa ambientalista não seria da esquerda, mas dos monárquicos, encabeçados por Gonçalo Ribeiro Telles (o que explicaria a maturidade e a cordura). Por outro lado, e cito-a, “a causa ambientalista arrancou (em Portugal) numa altura em que não se equacionava um colapso da vida no planeta. Criticava-se a modernização da agricultura, o estigma do mundo rural e procurava-se a criação de uma estrutura ecológica (verde) nas cidades. Foram lutas importantes, mas as causas da causa mudaram e a urgência também.”
Não se equacionava um colapso da vida no planeta, Carmo Afonso? Não havia urgência? Acho que está redondamente enganada. Nem as causas da causa nem a premência são novas ou recentes. Tal como também não é nova a apologia ou apropriação por parte da esquerda, em particular da extrema-esquerda, de ambas as coisas. É verdade que aqui em Portugal, em meados dos anos 70, essa extrema-esquerda andava mais entretida o ocupar casas, fábricas e herdades, ou a convencer os trabalhadores rurais que deviam pôr as suas enxadas à disposição das cooperativas agrícolas, mas lá fora já havia vida cultural e política, já havia uma ciência chamada Ecologia e já havia, também, um pavor com um fim iminente do mundo, e tudo isso já havia chegado a Portugal.
Qualquer jovem que no final dos anos 60 e início dos 70 ouvisse música popular anglo-saxónica, encontraria em cantores que hoje situaríamos política e culturalmente próximos do Bloco de Esquerda ou da ortodoxia comunista, como, por exemplo, Tom Paxton, a mensagem de que caminhávamos para a auto-destruição. No mundo francófono esse futuro apocalíptico era cantado por Herbert Pagani. Quem frequentasse os cinemas podia ver filmes que transmitiam a mesma ideia — por exemplo, À Beira do Fim (título original: Soylent Green, 1973). Qualquer pai ou mãe de família que lesse os jornais, no tempo de Marcello Caetano — o Diário de Lisboa, por exemplo —, estava a par de que o fim do mundo se anunciava para breve. E porquê? Porque essas notícias circulavam nos grandes meios de comunicação, eram do domínio público, e porque esse desenlace era, nessa época, uma quase certeza que viria a ganhar justificação e confirmação científica quando, em 1972, o chamado Clube de Roma pediu a uma equipa de cientistas do prestigiado MIT (Massachusetts Institute of Technology) que elaborasse um relatório sobre o que nos esperava em termos de crescimento demográfico e de esgotamento de recursos naturais. Apoiada no saber e nos meios informáticos então disponíveis, essa equipa, dirigida por Dennis e Donella Meadows, publicou um extenso relatório em forma de livro — Os Limites do Crescimento —, livro esse que vendeu mais de 12 milhões de exemplares e foi traduzido em 30 línguas diferentes.
Era um alerta vermelho para o mundo. Entre muitas outras coisas, o relatório calculava que em 28 anos apenas a população mundial duplicaria ou triplicaria, o que significava que no ano 2000 a Terra teria entre seis e nove mil milhões de pessoas e sabia-se de antemão que não havia condições para fazer frente a esse crescimento demográfico. Previa, também, que a poluição daria conta do planeta e que as pessoas se concentrariam nas orlas costeiras para conseguirem respirar o pouco ar que ainda existisse na atmosfera. Garantia que as reservas minerais e orgânicas se esgotariam, que em 2003 já não haveria petróleo e que em 2010 acabaria o gás natural. A UNESCO chegava à conclusão de que a Terra teria no máximo mais 20 anos de vida.
Felizmente essas previsões falharam, como sabemos, e esse fim do mundo não veio. Os jovens de esquerda e de direita que, então, muito se haviam inquietado e angustiado, tiveram a possibilidade de viver confortavelmente, de se tornarem velhos e de, em muitos casos, passarem a olhar com alguma reserva para os cenários catastróficos em que muitos jovens de hoje piamente acreditam. O que acontece, Carmo Afonso, é que “os velhos do costume”, como lhes chama, já viram muita coisa e não se deixam levar tão facilmente por todo e qualquer alarme. Sabem, também, que o clima muda e que há uma história dessa mudança e da percepção que as pessoas dela tinham. No século XVIII um sábio — ou “filósofo”, como se dizia na época — disse a Catarina II da Rússia que o globo iria aquecer gradualmente e ela ter-lhe-á respondido que se deleitava com a ideia de que daí por 200 anos São Petersburgo viesse a ter laranjeiras. Não defendo que devessemos ter a atitude descontraída da czarina face às mudanças climáticas. Existem, nessa área, problemas muito sérios ligados à industrialização, à poluição, aos resíduos tóxicos e à aceleração do ritmo das alterações, e é compreensível que os jovens se alarmem e angustiem, mas parece-me que a forma de expressão desse seu alarme é contra-producente. Estragar quadros em museus, cortar estradas ou encerrar escolas não os levará onde querem chegar. Se, contra o parecer de Carmo Afonso, quisessem ouvir os “velhos do costume” talvez eles pudessem dizer-lhes, para os tranquilizar, que acreditem na inventividade e na sensatez de alguns dos adultos nesta sala, que confiem no avanço da Ciência e que se lembrem de uma máxima central da Sociologia, isto é, que nas sociedades humanas a previsão actua sobre o facto previsto. Porquê? Porque devidamente informadas, devidamente alertadas, as pessoas ou algumas pessoas movem-se no sentido de evitar o que se prevê.
PS: Não posso terminar estas linhas que dirijo a Carmo Afonso sem lhe dizer que afirma outras coisas de pasmar, como, por exemplo, que “o modo de produção capitalista é o grande responsável pela perda de equilíbrio ecológico do planeta e pela destruição da natureza.” Carmo Afonso estará a par da destruição de ecossistemas inteiros na antiga URSS, uma formação política insuspeita de ter praticado o “modo de produção capitalista”? Pense no Aral, por exemplo. E outra pergunta: terá sido por simpatia pelos jovens activistas que reivindicam a saída dos fósseis do governo, que decidiu lançar mão do conceito de “modo de produção capitalista”, uma trilobite conceptual que sabemos ter existido no tempo de Marx, de Lenine e, também, no de Althusser, mas que de há muito se julgava extinta por falta de adequação e de uso?