Trump é um homem fora do comum. Depois da eleição de 2020 quase todos o enterraram, eu próprio o fiz, aqui mesmo no Observador. Equivocámo-nos. Trump tem várias vidas e parece mesmo ter um anjo da guarda a protegê-lo, como a sua miraculosa sobrevivência ao atentado de Julho demonstrou.
Mas recordemos aquilo que os mais apressados querem omitir: este não foi o primeiro debate presidencial de 2024. Certo, foi o primeiro entre Trump e Harris. Porém, Trump já havia debatido Joe Biden – actual presidente norte-americano – e venceu-o de uma maneira tão convincente que Biden foi forçado a abandonar a corrida pelos barões democratas.
Kamala Harris recebeu a nomeação democrata apressadamente e opacamente. Não houve qualquer tentativa de sequer montar um simulacro de primária, não havia tempo, diziam eles. Esta manobra maculará a história do partido democrata, que essencialmente apontou Harris sem a participação dos seus eleitores através de uma eleição aberta e competitiva.
Entremos agora no debate. Quanto ao aborto. Tema predilecto dos democratas que esperam cativar ainda mais mulheres – demografia onde se portam melhor do que os republicanos – a votar em Harris. Mas as mulheres que têm a questão do aborto como a primordial já vão votar em Harris independentemente do resto… esta insistência democrata neste assunto é na realidade uma tentativa de retirar tempo a outras questões, como a económica ou a geopolítica, onde o legado de Biden e Harris peca.
As mulheres brancas dos subúrbios em Michigan e Wisconsin – muitas delas casadas e mães – estão mais preocupadas com o futuro económico do país e com o futuro que os seus filhos encontrarão do que com a questão do aborto. Esses dois Estados baloiço – Swing States em inglês, os tais Estados que por vezes votam azul, por vezes vermelho – são muito importantes para Harris, parecendo-nos a nós que a Pensilvânia é já dada por perdida pela sua equipa por causa da questão do fracking.
Harris esteve bem, a nosso ver, quando relembrou o apontamento de três juízes conservadores para o Supremo Tribunal por Donald Trump. Não obstante, exagerou quando afirmou que Trump instituiria uma interdição nacional de abortar. Um homem que casou três vezes, que tem pessoalmente uma visão mais liberal sobre os tipos de vida de cada um, dificilmente pode ser descrito como um paleoconservador que vai banir o aborto.
Trump, hilariantemente, apareceu como o defensor do ordenamento jurídico-político dos Estados Unidos da América; relembrando aquilo que o acórdão do Supremo Tribunal havia dito – a questão do aborto é uma questão dos Estados federados que compõem o Estado soberano norte-americano. A América é um Estado Federal, não um Estado Unitário. É normal que um Estado federado mais liberal – por exemplo a Califórnia – tenha uma política diferente de um Estado mais conservador – como o Kentucky.
Sobre a questão das armas de fogo. Neste assunto cremos que Kamala Harris conseguiu contra-atacar eficientemente. Pensamos que poderá ter sido o tema no qual esteve melhor e conseguiu falar a um eleitorado que permanece indeciso, que soube tranquilizar. Trump avançou que Harris tinha um plano para confiscar todas as armas de fogo aos cidadãos – uma asserção ousada, como estamos já habituados vinda de quem vem.
Harris – na sua melhor frase da noite – disse o seguinte: “O Tim Walz e eu somos ambos portadores de armas. Nós não vamos retirar as armas a ninguém, por isso pára com as mentiras contínuas sobre esta coisa.” O tom, o olhar, a cadência das palavras. Este foi o momento em que Harris se ergueu ao patamar de uma possível presidente e já não somente de vice-presidente.
Visou Trump com altivez, desprezando-o com estilo, naturalidade e firmeza. Não foi trapalhona – como por vezes é – nem desajustada – demasiado expansiva através do seu riso. Infelizmente, para os partidários dos democratas claro está, é possível que a grandeza deste momento passe despercebida e não seja estudada e aproveitada para o que resta da campanha.
Tratemos agora da questão da imigração. Aqui Trump conseguiu uma clara vantagem por três motivos: a dialéctica partidária, a incumbência de Harris e a comunicação republicana.
A imigração – o tópico politicamente incorrecto por excelência – é um dos temas mais relevantes na Europa e na América do Norte. O partido republicano parte em vantagem face ao partido democrata nesta questão, a velha dicotomia direita contra esquerda é aqui operativa. Os independentes – os não afiliados em nenhum dos dois grandes partidos – estão cada vez mais conscientes sobre os desafios que a imigração coloca, e isso faz muitos deles penderem para o lado republicano.
Kamala Harris é de momento vice-presidente dos Estados Unidos da América. Essa incumbência é um fardo, e Trump utilizou essa realidade na sua última intervenção. Desmascarou Harris que disse que vai fazer isto e vai fazer aquilo e perguntou-lhe porque é que não o fez durante estes três anos e meio…uma seta envenenada deixada sem resposta, pois foi Trump quem fechou o debate devido a ter ganho na moeda ao ar.
Quiçá o terceiro motivo seja o mais relevante: aquele que associa directamente a questão na fronteira sul norte-americana com a vice-presidente Harris. O título oficioso de Czar da Fronteira – Border Czar em inglês – foi efectivamente atribuído a Harris. Isto permite à narrativa republicana implicá-la directamente na questão migratória. O problema não é da administração democrata em geral mas sim dela como responsável política individual. Os democratas nunca conseguiram contrariar esta associação.
Harris, para ganhar, vai ter que falar menos do aborto e mais da economia; menos do perigo que Trump colocaria ao sistema norte-americano e mais das suas promessas incumpridas no primeiro mandato.
Se Joe Biden pudesse ser removido da equação o debate teria sido um empate. Mas Trump não o permitiu, o que lhe deu uma ligeira vantagem quando a contenda chegou ao fim. O maior problema de Harris, neste momento, é Joe Biden. Mas logo depois do debate, o momento que pode decidir esta eleição veio apaziguar Harris.
Taylor Swift apoia a candidata democrata. Normalmente não pensamos que as celebridades tenham um impacto decisivo numa eleição, mas Swift não é uma celebridade regular, Swift é uma força sem paragão. Escrevemos – ainda era Biden o candidato democrata – em Itália que ela era a mulher entre Trump e a Casa Branca. Não mudámos de opinião. Trump ganha o debate mas perde o seu rescaldo com a decisão de Swift.
A ver vamos se existirá mais algum debate presidencial. Parece-nos improvável vermos mais dois. Se existir um segundo debate entre Harris e Trump deverá ser em Outubro, depois do debate dos vices entre Walz e Vance, que se realizará no primeiro dia desse mês.