“– Que inveja que eu tenho das pessoas que tiveram uma ideia ! E nós agora vivemos sem ideias. Quero uma Rússia grande ! Não me lembro dela mas sei que existiu.
– Existiu um grande país com bichas para comprar papel higiénico… Lembro-me muito bem de como cheiravam as cantinas e as lojas soviéticas.
– A Rússia há de salvar o mundo! E assim salvar-se a si própria!”
O Fim do Homem Soviético (2016) – Svetlana Aleksievitch
Pesquisas de Maio de 2022 do Levada Center – o mais credível centro de estudos de opinião e sondagens da Rússia, demonstram que 77% dos russos apoiam a ocupação militar da Ucrânia. Destes, 47% apoiam totalmente e 30% apoiam bastante, deixando para 17% a percentagem daqueles que não concordam com a intervenção militar. Idênticas opiniões têm sobre as sanções; 61% não se sentem muito incomodados com elas. Os estudos vão mais longe; 70% dos entrevistados acreditam que as sanções não terão um impacto negativo no desenvolvimento da Rússia e cerca de metade (47%) dos entrevistados acreditam que as sanções fortalecerão o país e tornar-se-ão num incentivo ao seu desenvolvimento.
Apesar de podermos aceitar que possa haver algum grau de distorção dos números devido ao contexto que vivemos, não deixa de ser significativo o apoio popular a um líder que ataca militarmente um povo irmão e um país soberano, isto em pleno século XXI.
O que explicará um número tão elevado de apoiantes de Putin e da guerra a um país contiguo, com tantos laços familiares e tantas interdependências? Será que as sanções não têm qualquer impacto na maioria dos russos? Será que os russos sabem mesmo o que se passa na Ucrânia? As respostas são complexas, mas tenho para mim que, embora as acções de Putin e dos seus governantes desempenhem um papel importante, há muitas evidências de que não só a maioria dos russos defende a guerra, aceita as sanções como o preço a pagar e não vê as acções antidemocráticas do actual governo, que atingem as suas liberdades políticas e civis, como negativas, como, pelo contrário, o povo russo apoia estas medidas e aceita-as faz muito tempo.
O Passado
Quando a União Soviética foi dissolvida, em 1991, eram grandes as expectativas de que uma Rússia livre do comunismo seguiria o rumo pró-ocidental, democratizando o sistema político, concedendo aos cidadãos direitos civis e reintegrando-se na comunidade internacional. Tais foram as promessas feitas por Gorbatchev e Yeltsin quando assumiram o poder. Mas depois de mais de uma década, essas expectativas não se concretizaram, pelo contrário, a liberalização económica, política e social e a democratização da Rússia deste período deixaram no país uma imagem de anarquia, injustiça e cleptocracia pouco digna de uma ex-potência mundial.
Desde que Vladimir Putin assumiu a presidência em 2000, tudo fez para mudar esta realidade, invertendo as políticas de Yeltsin e assumindo a acção no polo oposto; as instituições democráticas da Rússia foram amordaçadas, a liberdade de expressão e a comunicação social coagida e silenciada, os direitos civis restringidos, a economia fortemente intervencionada e protegida e a cooperação com a comunidade internacional fortemente condicionada.
Para perceber a Rússia de hoje é importante olharmos para o seu passado. Para tal recorro ao Historiador Richard Pipes, um dos maiores especialistas na história da Rússia. Para este historiador a Rússia é uma nação conservadora, cuja mentalidade e comportamento muda muito lentamente – se é que muda – independentemente do regime no poder. Mais, as mudanças na sociedade russa são sempre resultantes de grandes disrupções sociais, como revoluções ou guerras.
Há 100 anos, 80% da população da Rússia dedicava-se à agricultura e vivia em lugarejos dispersos e auto-suficientes, com unicamente duas grandes cidades; Moscovo e São Petersburgo. A Rússia não era uma sociedade, mas uma aglomeração de dezenas de milhares de povoamentos rurais separados, com fraca coesão social e em que os sentimentos nacionais eram pouco desenvolvidos. Os camponeses identificavam-se mais como cristãos ortodoxos do que como russos. O Czar era uma força longínqua que arrecadava impostos e recrutava soldados, sem dar nada em troca. A grande maioria da população da Rússia eram servos, em dívida perpétua para com o Estado ou com os proprietários privados. (Pipes, 2004)
A propriedade privada, os direitos civis e a justiça eram conceitos praticamente inexistentes em relação ao existente na Europa ocidental. Enquanto em Inglaterra, no século XIII, a terra era uma mercadoria, na Rússia imperial todas as terras pertenciam ao Czar até meados do século XVIII. Após esta data, para além da nobreza, apenas uma pequena minoria se tornou proprietária de terras. Também o conceito de justiça como o entendemos só surgiu por volta de 1864, sendo as actividades classificadas como crimes políticos tratados como meros procedimentos administrativos e não por tribunais.
Para Pipes, estes factores, a ausência de coesão social e nacional, a ignorância dos direitos civis e a falta de qualquer noção de propriedade privada e de uma justiça eficaz, levaram os russos a desejar um forte governo czarista. Com poucos laços sociais, queriam o Estado para os proteger uns dos outros, queriam que os seus governantes fossem fortes e duros. A experiência ensinou os russos a associar um governo fraco – e as democracias liberais capitalistas do Ocidente são vistas como fracas pelo povo russo – à desordem e a ilegalidade.
O Presente
Os russos actuais, como os seus antecessores, sentem-se distantes do Estado e da sociedade em geral. A sua lealdade é para com a família e os amigos, sentindo pouca afinidade com qualquer comunidade maior. As relações de confiança com os estrangeiros, alicerçada no comércio entre povos e num quadro de leis e direitos iguais entre eles, base da civilização no Ocidente, está em grande parte ausente dos russos.
A democracia é vista como uma fraude. Existe uma percepção predominante de que a política da Rússia foi em determinado momento “privatizada” e controlada por clãs poderosos e que Putin está a alterar esse estado de coisas, não num caminho mais democrático mas com outras oligarquias que não as de Yeltsin. O sistema judicial é assumido como corrupto e subserviente ao Estado, especialmente desde que Putin assumiu a presidência. Em relação à iniciativa privada e aos direitos de propriedade as opiniões dos russos são bastante negativas e variam entre a indiferença e a hostilidade total. Afirmando que as desigualdades de riqueza na Rússia são excessivas e ilegítimas, a maioria atribui a pobreza generalizada do país à corrupção e à cleptocracia instalada. (Pipes, 2004)
A auto-imagem da Rússia é contraditória. Se por um lado se orgulham do seu passado, czarista imperial mas principalmente do soviético, em que tinham o estatuto de superpotência mundial em resultado do seu papel na IIª guerra e do seu contributo para a vitória dos aliados sobre os nazis – vitória da qual eles acham que são os principais obreiros, remetendo os EUA e a Inglaterra para uma contribuição menor – por outro lado sofrem de uma profunda ansiedade e depressão social, um sentimento de medo e inferioridade em relação ao seu papel na Europa e no Mundo em comparação com o EUA e os países Europeus. Os russos parecem aspirar sempre a mais do que os seus meios e capacidades podem alcançar, vivendo numa permanente frustração social em relação à sua identidade nacional e ao seu papel no Mundo.
Os russos, tendo perdido em 1991 o sentido de identidade nacional que o imperialismo e o comunismo lhes dava, esperam que Putin crie uma nova identidade, baseada numa mistura de czarismo, comunismo e estalinismo, um regime idealista de ordem e disciplina, onde todos cumprem o seu dever comunitário e social e a corrupção será punida impiedosamente. A identificação das pessoas com um governo forte – internamente e no exterior – é uma parte central da estratégia e do plano de acção de Putin. Um “governo forte” significa acção e vitórias militares que – para os russos – os estrangeiros respeitarão e irão temer como no passado o fizeram. Os russos sonham com a afirmação mundial do seu excepcionalísmo de nação sofredora, que será referência futura num mundo onde a moral e o sentido de dever irá prevalecer sobre o egoísmo, a ganância e a degradação dos costumes visível no Ocidente.
Quanto às sanções ocidentais, elas podem não estar a mudar a Rússia mas estão sem dúvida a atingir sectores dessa mesma população, como as elites e a classe média urbana. Governos, universidades, instituições académicas e científicas de investigação de todo o mundo cancelaram milhares de projectos com cientistas e instituições russas. Do Facebook à Netflix , os serviços digitais tornaram-se indisponíveis. Os vistos para a União Europeia são dificílimos e deixou de haver voos, comboios ou autocarros directos para Moscovo ou São Petersburgo. Não podem usar os cartões de crédito no exterior ou pagar os bens e serviços estrangeiros. Para a elite russa cosmopolita, a vida tornou-se muito difícil mas são raríssimas as manifestações ou expressões de desagrado que sejam visíveis publicamente ou toleradas, pois os agentes do estado policial de Putin têm o poder e as capacidades necessárias para reprimir qualquer protesto de rua, inclusive por meio de intimidação, prisões e outras punições, como multas pesadas. Nos primeiros dias após a invasão, o governo russo aprovou leis que criminalizam a discussão e a divulgação de informações sobre a guerra, obrigando as agências de notícias independentes do país a fechar. (Zubok, 2022)
Mas essas são apenas as ferramentas mais visíveis do sistema de controle de Putin. Como muitos outros autocratas, Putin sabe explorar a desigualdade económica para estabelecer uma base firme de apoio, usando as diferenças internas a que a geógrafa russa Natalya Zubarevich chama “as quatro Rússias”.
A primeira Rússia é formada pelos habitantes urbanos das grandes cidades, como Moscovo e São Petersburgo, muitos dos quais trabalham na economia pós-industrial e estão culturalmente ligados ao Ocidente. Eles são a maior oposição a Putin e já fizeram protestos contra o presidente, mas constituem apenas um quinto da população e estão simplesmente a fugir do país, algo que Putin apoia. As outras três rússias são os moradores de cidades industriais mais pobres, que têm nostalgia do passado soviético; pessoas que vivem em cidades rurais em declínio e os não-russos multiétnicos do norte do Cáucaso e do sul da Sibéria. Os habitantes dessas três rússias apoiam predominantemente Putin porque dependem de subsídios do Estado e porque aderem a valores tradicionais quando se trata de hierarquia, religião e visão de mundo – posições culturais que Putin defende no governo imperialista e nacionalista do Kremlin. A maioria dos membros destes grupos não se sente ligada à economia global, não se incomodando com a exclusão da Rússia do Ocidente por meio de sanções e proibições. Para manter o apoio desses grupos, Putin pode continuar a subsidiar algumas regiões e despejar bilhões em projectos de infra-estruturas e construção alimentados pela venda de energia a muitos países, principalmente no Ocidente.
Conclusão
As perspectivas não são animadoras. É com desânimo que muitos como eu vêem Putin transformar lenta e deliberadamente a Rússia numa autocracia assente em oligarcas e nos seus siloviki. Mas o facto é que os russos aprovam as suas acções. Putin é popular porque restabeleceu o modelo tradicional de governo da Rússia e dos russos: um estado autocrático, fortemente intervencionista e proteccionista, no qual os cidadãos são exonerados de responsabilidade política e no qual inimigos estrangeiros são invocados para forjar uma artificial mas confortável unidade nacional. O único desejo que Putin ainda não satisfez é o de restaurar o status da Rússia como uma grande potência militar como no tempo de Estaline. Foi isso que planeou e preparou cuidadosamente desde 2000, que iniciou na Geórgia em 2008, deu continuidade em 2014 na Crimeia, na Síria em 2015 e em 2022 com a invasão da Ucrânia. Nada indica que fique por aqui.
Pipes, Richard, (2004) – “Flight from Freedom” – May/June – Foreign Affairs – https://www.foreignaffairs.com/articles/russia-fsu/2004-05-01/flight-freedom
Zubok, Vladislav (2022) – “Can Putin Survive? – The Lessons of the Soviet Collapse” – July/August 2022 – Foreign Affairs – https://www.foreignaffairs.com/articles/russian-federation/2022-06-21/can-putin-survive