Um dos tristes sinais de nossos tempos é que demonizamos aqueles que produzem, subsidiamos aqueles que se recusam a produzir e canonizamos aqueles que reclamam”. Thomas Sowell

Depois de anos a criar entropias ao normal funcionamento dos mercados e a ignorar sinais óbvios de rutura em alguns centros urbanos, foi preciso haver uma escalada nas taxas de juro e uma pressão inflacionista que está a deixar as famílias desesperadas para o Governo de Portugal, como quase sempre, acordar tarde para um problema que, diga-se, já não vai a tempo de resolver no prazo da atual legislatura. Na linha do que tem ocorrido sempre que um problema estrutural lhe rebenta nas mãos, António Costa lançou uma ruidosa iniciativa de marketing a que chamou “pacote habitação”, uma mistura de boas e más medidas que, no seu conjunto e timing, não é apta a resolver coisa nenhuma.

A principal razão pela qual os mercados da habitação são ineficientes resulta, em larga medida, da sua excessiva dependência do papel regulador do Estado e das autarquias, e da forma como a habitação funciona como elemento de arrecadação de receita fiscal. Acresce que o facto de boa parte da habitação ser dinamizada por crédito onde as taxas de juro são artificiais e nem sempre representam a renumeração adequada do risco, tudo somado, faz destes mercados ineficientes, onde as barreiras à entrada são elevadas e os incumbentes, que controlam os mecanismos da regulação pública e do financiamento privado, tudo fazem para maximizar as suas rendas, num negócio onde a receita fiscal e a especulação se juntam para extorquir os cidadãos.

Importa também ter presente que não faltam em Portugal imóveis. Aliás, a maioria dos imóveis devolutos situam-se – pasme-se – nas zonas onde há crescente desertificação e menor atividade económica. Muitos deles estão degradados e são a imagem visível da decadência gradual de várias zonas do país. Ora, é nos centros urbanos de Lisboa e Porto, e respetivas periferias, e em algumas faixas do litoral, que faltam casas em condições de habitabilidade.

Há, ainda, que ter consciência que não há “um” mercado da habitação em Portugal, mas vários, que servem diferentes segmentos da população, com vidas e objetivos distintos. Há casas para habitação própria e permanente, casas para férias, casas que se possuem para investimento. Há pessoas que têm casas na idade avançada da reforma, gente em início de vida, estudantes, famílias numerosas, emigrantes com distintos poderes de compra, trabalhadores remotos que precisam de novas casas aptas a viver e trabalhar, na hora de fazer o encontro entre a oferta e a procura são milhões as preferências individuais que precisam urgentemente de investidores e promotores criativos e motivados – e não de um Estado geriátrico e cheio de artroses e acefalias – a cobrir as necessidades de uma sociedade em profunda mutação.

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No ambiente de transformação social que se vive em Portugal, se o Governo quer mesmo que haja mais casas disponíveis para habitar, tudo o que deve fazer é criar condições para que haja investimento, permitindo e facilitando a construção, deixando os mercados funcionar, diminuindo as barreiras à entrada de novos agentes económicos. Nessa medida, facilitar os licenciamentos e colocar no mercado as centenas de milhar de imóveis devolutos que estão nas mãos do Estado, muitos deles apetecíveis, são decisões importantes para solucionar problemas. Há várias medidas úteis no “pacote habitação”, as quais, porém, ficam feridas de morte pelos erros capitais cometidos pelo Governo, na hora de tentar agradar às suas clientelas políticas. Na verdade, não há investimento sem confiança e consistência na gestão integrada das políticas públicas. Ora, a forma como o Governo optou por atacar a propriedade e a liberdade dos proprietários de afetarem os seus imóveis aos usos que lhes pareçam mais adequados, seja na limitação do alojamento local, seja numa suposta promoção da natureza social da propriedade, é incompreensível num partido que dispõe de uma maioria absoluta e que julgávamos nós estar liberto das amarras e compromissos da Geringonça.

Não faltaram por estes dias análises criativas a enaltecer o papel social do Estado na habitação, e o toque de Midas que existirá com a sua intervenção. Temos até quem encontre sofisticação constitucional para defender um “pacote habitação” que parece, nas suas contradições intrínsecas, uma produção algorítmica do ChatGPT. Ironicamente, os mesmos que elogiam o carácter virtuoso da ação pública esquecem que o maior proprietário do país, incapaz de colocar o seu próprio património ao serviço das populações, é o Estado. Sim, do interior abandonado aos centros mais valiosos das principais cidades de Portugal, quem mais imóveis devolutos tem para rentabilizar, é o próprio Estado, sendo esse mesmo Estado que, sendo incapaz de cuidar do que é seu e de todos nós, quer agora utilizar o património dos cidadãos (obviamente o que está bem cuidado) para o colocar, dizem, no “mercado”. Não há nada mais destruidor da confiança no investimento que esta voracidade de dizer a quem recuperou as suas casas, investiu as suas poupanças, ou confiou no nosso país para investir, que o nosso Estado, altamente dono e senhor de imóveis e que historicamente foi incapaz de se libertar daquilo que tem e de manter o seu património num estado de razoável salubridade, pretende fazer políticas públicas de habitação contra as decisões voluntárias dos proprietários.

Mais: há que referir sem medo que o grande responsável pela crise na habitação nas zonas mais populosas e atrativas do país é o Estado. Como nos ensinou Thomas Sowell, uma das maiores desgraças do socialismo são as consequências não intencionais (“unintended consequences”) que acionam a terceira lei de Newton: para cada ação, há uma reação igual em sentido oposto. A ideia é tão aplicável na física como na política. Leis, políticas públicas ou jurisprudências constitucionais criativas que defendem um papel predominante dos governos na solução dos problemas que cabe às pessoas solucionar, são enganosas. Funcionam na perfeição no papel e no moderno PowerPoint, mas na hora da verdade acabam por ter consequências não desejadas ou não antecipadas, que na maior parte das vezes anulam ou suplantam os benefícios que se procurava atingir. Veja-se por exemplo o caso do regime fiscal para residentes não habituais. O governo português permite que cidadãos estrangeiros acedam, durante dez anos, a um regime em que todos os rendimentos obtidos em território português são tributados a uma taxa especial de 20%, em sede de IRS, se não for exercida a opção pelo seu englobamento (algo que acontecerá quando a taxa for inferior). O que isso significa? Que, atualmente, um trabalhador português da classe média ou alta é negativamente discriminado face a um cidadão estrangeiro que venha para Portugal cumprir a mesma função, com impacto imediato no rendimento líquido. Ora, na hora de arrendar uma casa, os trabalhadores portugueses terão uma dificuldade acrescida em acompanhar a alta de preços, e os senhorios tenderão a arrendar as suas casas a quem demonstre uma maior capacidade de pagamento. Não espanta por isso que nas camadas da população portuguesa com maior mobilidade (seja pelo tipo de profissão, seja pela idade), a opção seja cada vez mais pela emigração, enquanto por cá os empregadores crescentemente optam por contratar trabalhadores estrangeiros, que para o mesmo salário líquido exigem um menor salário bruto. Não me interpretem mal: sou por convicção a favor das sociedades abertas e dos fluxos migratórios, mas uma política que trata de forma desigual, trabalho igual, favorecendo estrangeiros em relação aos nacionais, representa um suicídio político e social que vai ter consequências mais gravosas no dia em que se esgotar o período do benefício fiscal (dez anos), e boa parte dos trabalhadores deixarem as empresas portuguesas de regresso ao país de origem ou em movimento para outras paragens. Entretanto, as casas disponíveis, hoje, vão parar às mãos de quem as pode pagar, cidadãos estrangeiros com o beneplácito do governo português.

Se o Governo português quer resolver o problema da habitação em Portugal, não faltam medidas úteis: onde haja boas redes de transporte, escolas, creches, condições de segurança, que tornem atrativas áreas urbanas, não faltarão investidores privados com confiança para construir, e pessoas interessadas em aí morar. Do mesmo modo, facilitando as transações, removendo o IMT, e permitindo a liquidez no mercado habitacional, não faltarão pessoas que, pela sua situação de reforma com saúde ou pelas novas condições de trabalho, estarão disponíveis a mudar-se para zonas onde a pressão imobiliária é menor, desde que haja nessas zonas mais deprimidas fatores de estabilidade, em especial, serviços sociais e de saúde adequados. O que é fundamental é que o Governo ponha de lado ideologias falidas e pense em soluções consistentes e coerentes para os tempos de hoje, concentrando-se naquilo que amplia a oferta e reforça a confiança de todos os que por cá habitam e também dos que por estes tempos escolhem Portugal para aqui construir os seus projetos de vida: em igualdade de circunstâncias. De contrário, daqui por uns anos, aqui estaremos a tentar perceber por que razão, mais uma vez, o toque de Midas afinal deu em cocó.