Vivemos tempos individualistas – e eu, fã do individualismo e inimiga do coletivismo, aprovo. Somos encorajados a desenvolver as nossas características mais específicas, a diferenciar-nos, quem tiver talentos pouco difundidos pela raça humana deve exibi-los e terá o sucesso garantido. O mercado – de tudo – está seccionado em nichos cada vez mais exorbitantes na exiguidade. Os hippies, os hipsters, o luxo, o super luxo, o vintage, o minimalismo, os urbanos, os campestres, os cosmopolitas, os adoradores de animais, os alérgicos a animais, as famílias, os casais que querem fugir de crianças, os solitários, os viciados em estampados com bolinhas, as pessoas que gostam de roxo. Todos têm uma panóplia de produtos à disposição que os querem convencer de que foram produzidos só para mimar estes seres únicos e irrepetíveis.

As questões identitárias ocupam incontáveis páginas de livros, revistas, departamentos universitários. Os sobreviventes de um evento traumático fazem questão de evidenciar como por ele foram marcados. As minorias – religiosas, étnicas, de orientação sexual,… – reforçam os traços distintivos que possuem para não se verem diluídos no mainstream e para reivindicarem direitos e oportunidades que porventura lhes são negados.

Mas há uma exceção. Num mundo onde todos estamos compulsivamente obrigados a ser únicos, informam-nos que, afinal, os sexos são iguais e as diferenças entre eles são só construções culturais. (Isto ao mesmo tempo que se reclama – e muito bem – por uma maior participação feminina na política, na chefia das empresas e até na comentadoria mediática. O que, sendo homens e mulheres iguais, não faz qualquer sentido, porque neste caso tanto faz estar – na AR, no governo, no programa televisivo – um homem ou uma mulher.) Em suma: devo ser diferente de todas as minhas colegas de sexo, mas igual aos homens.

Vem isto, parecendo que não, a propósito dos presentes de Natal.

Andou o caro leitor por estes dias a comprar presentes para crianças despreocupadamente, escolhendo apenas segundo os gostos dos petizes e o orçamento disponível? Fez mal. Uma das causas crescentes do politicamente correto diz-nos que os brinquedos são uma das mais malévolas causas da opressão feminina que ainda grassa pelo mundo. Pelo menos, são culpados impenitentes pela segregação sexual de algumas profissões, pelo facto de as mulheres serem minoritárias nas áreas científicas e, quiçá, pela desigualdade salarial entre homens e mulheres.

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Se comprou uma boneca com um vistoso vestido rosa para a sobrinha e um carro verde metalizado para o afilhado, saiba que devia estar com a consciência pesada. Eu, que costumo oferecer com frequência à filha de uma amiga conjuntos coloridos de maquilhagens e vernizes para criança, tomei já nota para, em 2016, me penitenciar e mudar os hábitos perniciosos.

Segundo reza a teoria, as diferenças de percurso entre homens e mulheres são causadas também pelos brinquedos com que os petizes contactam na infância. Não deixa de ter resquício de verdade, claro. Oferecer às meninas eletrodomésticos de brincar ou reproduções de vassouras ou tábuas de engomar tem evidentemente a mensagem ‘as tarefas domésticas são femininas’. (Eu nunca os ofereço. Só sou culpada de querer transformar uma criança inocente numa mulher-objeto. Mas como as pessoas mais atraentes são financeiramente mais bem sucedidas, no fundo estou a potenciar o sucesso económico das filhas das minhas amigas.)

Também há questões pertinentes sobre desenvolvimento: os brinquedos de rapazes estão associados a competências espaciais e matemáticas enquanto os brinquedos de raparigas desenvolvem a motricidade fina, a linguagem e as competências sociais. E muito certamente não vejo que os pais ou outros cuidadores devam proibir uma rapariga de brincar com carros e bolas se lhe apetecer ou um rapaz com um microondas e uma boneca.

Mas não consigo tirar-me a impressão de que os brinquedos são um alvo fácil para pessoas que gostam de se enfurecer. Quando era criança – e nunca fui maria-rapaz – lembro-me de brincar aos polícias e ladrões e aos índios e cowboys com os meus primos. Lia tanto os livros do Michel Vaillant herdados dos meus irmãos como os da Anita herdados da minha irmã. Havia legos (e para que sexo são os legos?), microscópios, papel e lápis para desenhar. E, claro, as bonecas e as roupas para bonecas.

Para os meus filhos é igual. Há poucos anos, rapazes e raparigas viciavam-se a fazer pulseiras com pequenos elásticos – o que antes seria considerado de meninas. Há computadores de brincar (e a sério) e tablets para pequenos eles e para pequenas elas. Os filmes infantis, que os rapazes também vêem, têm tido personagens femininas fortes que estão no extremo oposto do estereótipo ‘princesa à espera que o príncipe encantado a salve’.

Talvez se possa, portanto, assumir que os brinquedos não são a causa de todos os males do mundo e que, deixando os pequenos seres contactarem entre si, o apocalipse não virá por este lado. E se persistir alguma diferença nos brinquedos de que gostam rapazes e raparigas, é porque, de facto, os sexos não têm de ser iguais. E é mais divertido assim.

Sobretudo não ousem misturar nas lojas de crescidos as secções de mulher e de homem.