Numa crónica do início dos anos 90, Miguel Esteves Cardoso denunciava, como sinal do declínio de Portugal, o êxito das delícias do mar. “Entre umas boas navalheiras, baratas e acabas de cozer, e um pratinho de delícias do mar, caras e acabas de descongelar, já não hesitam”, argumentava. “Preferem o produto da fábrica, ao fruto do mar”, explicitava mais à frente.

A questão é bem mais do que alimentar. Não é só o frango que tem que ser “mais compreensivo, mais sensível aos sentimentos humanos”, ao ponto de aparecer “em casa já pré-decapitado”. É a vida, no seu conjunto, que parece necessitar de ser pronta a comer.

A industrialização criou um mundo onde a consciência e a culpa podem ficar tranquilas. Já não precisamos de matar para comer. Tudo isso está escondido ou disfarçado dentro de cuvetes de plástico ou de papel, se já tivermos chegado ao tempo da ecologia. Ainda assim, nada disto evita o perecer das criaturas. Tudo é, no fundo, um pedaço de farsa.

Quem também com isto sofre é a quaresma, proclamada, hoje, como tempo de desintoxicação. O jejum é detox. A oração é mindfullness. A esmola é programa de restituição ou compensação monetária. Na realidade, tudo não passa de uma forma de desculpabilização ou de uma maneira hábil de nos safarmos. O que importa é que eu me liberte, que remova o veneno, que me descontamine, que alivie o peso.

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Por isso, o modo como hoje se pensa, em geral, a quaresma está para o cristianismo, como as delícias do mar estão para o consumo de mariscos. Há uma enorme diferença entre comer uma sapateira e desembrulhar um pacote de delícias do mar. Destas últimas, Miguel Esteves Cardoso disse que possuem um sabor “separado da vida original”, “um sabor ignorante”. Da mesma forma que há uma enorme diferença entre uma quaresma transformada em aspirina ou placebo e uma que é uma verdadeira viagem no deserto.

De facto, na quaresma trata-se mais de aceitar, do que de descontaminar. Mais de carnificina, do que de inocência. Mais de retalhos, do que de limpidez.

Quem já comeu uma santola conhece as diferentes reentrâncias daquele corpo. Sabe que necessitamos de vários instrumentos, para aproveitar todos os recantos. Experimenta os vários tipos de carne. Mas, tudo isso está ausente nas delícias. Nelas tudo está pronto a desfiar. Ora, o cristianismo é o inverso desta prontidão. Antes de “remove o pecado”, diz “aquilo que não é assumido não é salvo”. Antes da “folha em branco”, prefere ver os rabiscos.

Diante do bife embalado, o “culpado” nunca sou eu. “Não colaborei”, “Não sei de nada”, “Não é comigo”, “Não vou deixar que se estrague”. Mas é para nós, que temos sempre a tendência a culpar o mundo, a família que nos educou, o país em que nascemos ou o ambiente que temos, por todo o mal que experimentámos, que a quaresma acontece com a oportunidade de assumir que fomos, também nós, que não fizemos o que devia ter sido feito.