Maria João Avillez é a cronista da democracia portuguesa. Presente na criação do novo regime constitucional, forma-se como jornalista política no Expresso da revolução, torna-se uma referência indispensável no semanário onde se reinventa o jornalismo português e é testemunha privilegiada de todas as crises que fazem a história da nossa democracia.
A palavra escrita é o seu instrumento de eleição, o seu tema principal são os políticos que dominam o longo processo de consolidação de uma democracia civil e pluralista de tipo ocidental, e as entrevistas são – continuam a ser – o seu método preferido.
Os três intelectuais que fizeram a revolução portuguesa têm um lugar próprio na sua obra. O primeiro livro de Maria João Avillez é um ensaio biográfico sobre Sá Carneiro, Solidão e Poder, depois consegue o feito único de escrever a biografia definitiva de Mário Soares com o próprio; e não quis deixar de publicar um livro de conversas com Álvaro Cunhal. Uma parte das suas primeiras entrevistas está publicada em Entre Palavras (1974-1984) e os vinte anos do 25 de Abril dão origem a outro livro de entrevistas – Do Fundo da Revolução, uma colecção fascinante de retratos dos actores secundários da transição revolucionária feitos para o Público. Os seus livros são uma marca da qualidade do jornalismo político e uma referência obrigatória na história da democracia portuguesa.
A sequência dos artigos de jornal, das entrevistas, dos ensaios e dos livros revelam não só um trabalho sistemático, rigoroso e persistente que confirmam a força da sua vocação, mas também uma necessidade de rever as crises e as conspirações para decifrar os códigos que definem a cultura política nacional.
As Sete Estações da Democracia Portuguesa confirmam essa linha de continuidade, no sentido em que recapitulam os períodos decisivos da construção do regime democrático, mas mudam de registo com uma problemática inovadora. O ponto é menos a memória e a reconstituição dos momentos críticos na acção dos actores principais e mais uma tentativa de definir os sinais de identidade do período democrático por referência a sete personalidades – todos, menos um, antigos primeiros-ministros. O que são o soarismo, o sá-carneirismo, o cavaquismo, ou mesmo o guterrismo, o passismo, o costismo e o marcelismo, no tempo e no modo da democracia portuguesa ?
Maria João Avillez escolheu sete intelectuais para ir à procura da resposta – um para cada estação. Os sete estão distribuídos pelas três gerações políticas do regime – os que começam a fazer política antes da revolução, os que se formam na transição revolucionária e os que fazem carreira depois da consolidação democrática; representam as principais correntes políticas – dois são de direita, três centristas, dois sociais-democratas; todos fizeram política e só um nunca quis ocupar o seu lugar nas instituições democráticas – a lista inclui dois antigos primeiros-ministros, um ex-vice primeiro-ministro, dois antigos deputados europeus e o Presidente da República; todos conheceram pessoalmente e têm relações próprias com os titulares da sua estação – um reclama uma relação fraterna; dois assumem uma relação filial; outros dois preferem uma distância crítica; e dois ainda são herdeiros ou, pelo menos, não recusam esse estatuto.
As sete entrevistas, como as sete estações, são diferentes e têm um peso desigual. O soarismo é a única estação que todos reconhecem como marca identitária da democracia – tal como os Franceses com de Gaulle, também todos os portugueses foram, são ou virão a ser soaristas. Sérgio Sousa Pinto encontra a origem do soarismo na reconstrução do Estado destruído pela revolução e define a essência da política de Mário Soares como uma aliança (realista) entre a liberdade e a prosperidade – ou, numa fórmula caseira, um frigorifico em casa de cada português: a aliança do PS com os seus adversários esquerdistas e as políticas (irrealistas) da “geringonça” – uma “Suécia fiscal” em cima de uma “Albânia económica” – são o fim do soarismo. Pedro Santana Lopes demonstra que o sá-carneirismo nunca existiu, mas que, se não tivesse existido, nunca teria sido possível a revisão constitucional que completa a transição para a democracia plena: na balança entre a ética da convicção e a ética da responsabilidade, Francisco Sá Carneiro escolhe sempre o conflito na defesa dos princípios contra os consensos e os compromissos, o que torna as suas iniciativas ao mesmo tempo decisivas e precárias. José Manuel Durão Barroso escolhe o governo minoritário do PSD como o acto fundador do cavaquismo, que caracteriza, por um lado, como uma combinação entre a estabilidade política, as políticas de desenvolvimento e de crescimento económico e o compromisso com a justiça social e, por outro lado, como uma versão do pensamento social-cristão – o fio que une Sá Carneiro, Cavaco Silva e Rebelo de Sousa.
Marcelo Rebelo de Sousa acrescenta António Guterres à lista dos católicos-sociais (católicos, e não quaisquer cristãos), onde ele próprio forma uma ala direita e o seu par uma ala esquerda. Em tudo o resto são iguais, inseparáveis e íntimos – “ele percebe o que eu faço, eu percebo o que ele faz”. Nesse sentido, o guterrismo não pode ser mais do que uma rede de contactos que organiza “pessoas completamente diferentes entre si … unidas numa base meramente pessoal – quer pela ligação que tinham com ele, quer pela admiração que lhe nutriam”: o soarismo, o sá-carneirismo e o cavaquismo tinham “uma substância ideológica, doutrinária e estratégica”, mas nada disso existe com Guterres. Francisco Assis reconhece em Pedro Passos Coelho um paradigma da ética da responsabilidade e a coragem de ter escolhido a narrativa da adversidade contra o infantilismo populista na sua estratégia de resposta à crise que, desse modo, conseguiu neutralizar a ascensão da direita radical; mas deixa o passismo suspenso a benefício de inventários futuros. José Miguel Júdice também resiste ao costismo, sem deixar de reconhecer António Costa como o melhor político da sua geração, o único dirigente da esquerda que soube antecipar uma conjuntura europeia em que a convergência com a direita se revela fatal para os partidos sociais-democratas e o único primeiro-ministro socialista que se alia a um Presidente da República centrista para consolidar uma maioria de esquerda. Paulo Portas guarda a última palavra sobre o marcelismo – o marcelismo democrático, entenda-se – mais para o fim do seu último mandato, durante o qual é provável o declínio do ciclo de esquerda: em Portugal, salvo excepção, os ciclos políticos não duram mais do que duas legislaturas e a tradição dos segundos mandatos presidenciais antecipa uma crescente intervenção de Belém.
As estações de Maria João Avillez e dos seus entrevistados, tocadas a quatro mãos, são todas de visita obrigatória e as mais interessantes são as mais impressionistas. A política – o lugar do bem e do mal – habita em todas as sete estações e é tanto o modo de reunir a comunidade nacional num projecto colectivo que pode fazer Portugal maior, como o abismo onde as paixões negativas podem destruir o destino comum. As palavras com que Maria João Avillez procura decifrar os mistérios da política são as mesmas que a protegem da política.