Há muitas lendas que se contam a propósito de Churchill, e por isso não sei se a que vou contar é verdadeira. Mas se não é, podia ser.
O Parlamento britânico, como se sabe, tem uma configuração diferente da maioria dos restantes parlamentos, pois não tem o formato de um hemiciclo, antes se reduz a duas bancadas que se enfrentam uma à outra. Numa senta-se a maioria de governo, na outra a oposição. Ora um dia, no início de uma sessão parlamentar, um jovem eleito, novato nas lides, foi sentar-se ao lado de Churchill e, para entabular conversa, ter-lhe-á perguntado, olhando para a bancada em frente: “Então é ali que se sentam os nossos inimigos?” O velho estadista ter-se-á virado para o atrevido e, de forma pedagógica, replicado: “Ali não se sentam os nossos inimigos, sentam-se os nossos adversários”. Depois de uma pequena pausa, acrescentou: “Os nossos inimigos sentam-se deste lado, entre nós”.
Lembrei-me desta história ao assistir ao segundo debate entre António Costa e António José Seguro e ao notar o nível de acrimónia que o atravessou do princípio ao fim. Depois de se ter apresentado quase displicente no primeiro frente-a-frente, Costa optou por subir de tom e não tardou que os dois homens que querem ser líderes do PS começassem a acusar-se mutuamente de “arrogância” ou de “altivez”, de “estar à janela” ou de apenas papaguear o que lhe dizem “as agências de comunicação”. Não me recordo de muitos debates entre líderes de partidos diferentes de que tivesse resultado tão evidente a falta de estima mútua.
As lutas fratricidas, como todas as guerras dentro de uma família, são por regra mais feias e mais cruéis do que os embates entre adversários, e isso tem-se tornado cada vez mais evidente nesta luta no interior do PS. Só que neste caso há duas agravantes.
Por um lado, as feridas que estão a ser abertas vão levar muito tempo a curar. Muito tempo mesmo. Tornou-se tudo demasiado pessoal, não apenas entre Costa e Seguro, mas também entre os apoiantes das duas candidaturas. para se imaginar que, no dia seguinte, o partido se volta a unir. Isso não acontecerá, tal como não aconteceu depois do dilacerante combate entre Sampaio e Guterres, há mais de vinte anos, um combate onde Costa e Seguro também estiveram em barricadas opostas.
Por outro lado, como também é típico em eleições primárias, os dois candidatos estão a cair na tentação de radicalizarem o seu discurso. Não o fazem radicalizando as suas propostas políticas, pois têm a noção que devem aparecer junto do eleitorado com alguma razoabilidade, mas fazem-no subindo o tom das críticas que fazem ao que foi a governação nos últimos três anos. Algumas das suas tiradas fazem lembrar aquilo que se escreve nas caixas de comentários das redes sociais, onde todas as diatribes são autorizadas e onde ninguém surge a perguntar pela viabilidade das alternativas. Nestes dois debates esteve-se imenso tempo a discutir se o PS devia ter sido, ou não, ainda mais radical na sua oposição ao Governo, como se a credibilidade do futuro líder se medisse pelos décibeis dos protestos e como se o líder do PS devesse ter como objectivo central capitalizar o descontentamento dos eleitores, uma estratégia mais própria de um Jerónimo de Sousa ou de uma Catarina Martins.
Nesta competição para ver quem grita mais vezes “mata” ou “esfola”, na ilusão de que é isso que vai agarrar a bases e encantar os simpatizantes, tanto Costa como Seguro laboram num duplo erro. Primeiro, esquecem-se de que, para os portugueses, mesmo para os que estão muito zangados com o Governo, o descontentamento é também com o Partido Socialista, o partido que levou o país até ao pedido de resgate. Nenhuma “narrativa” alterará esta realidade, ao contrário do que alguns, com Costa à cabeça, continuam a pregar. 2015 não será 2005.
O segundo erro é a ideia de que poderão fazer tábua rasa do que se passou nos últimos três anos (Costa até já quer voltar atrás no processo de fusão das freguesias, ambos querem reabrir tribunais e tudo o mais de que se lembrarem). Ambos entendem que têm tudo o ganhar quanto mais maltratarem o PSD e o CDS, como se os pudessem descartar para a eternidade. Ora em Portugal, com ou sem Pacto Orçamental, com o défice que ainda temos, com os encargos que se acumulam no nosso futuro, vai ser necessário continuar a fazer reformas e elas só podem se feitas – só devem ser feitas – com quem está à direita do PS. O resto ou são dinossauros que não se movem, ou libelinhas que não se sabe bem por onde andam e onde querem pousar. Costa e Seguro sabem disso, mas acham que lhes fica bem ignorá-lo.
Mais: hoje os portugueses não desconfiam apenas de quem faz muitas promessas – desconfiam igualmente de quem não quer dizer ao que vem e como vem. Hoje os portugueses – não todos, mas muitos – já fazem sempre a pergunta: mas quem paga? Mas como se paga? Seguro, que anda nesta batalha há três anos, já o compreendeu; Costa ainda não, chegando a irritar-se quando lhe pedem para ser concreto.
Olho por isso com alguma preocupação para o que resulta destes dois primeiros debates. Olho com preocupação para um PS radicalizado, amargo e que perdeu o sentido das proporções (alguém reparou, por exemplo, no tom de algumas reacções de líderes socialistas qualificados ao anúncio de que Carlos Moedas iria ficar com uma pasta importante na próxima Comissão Europeia?). Olho com inquietação para o afã com que todos parecem empenhados em incendiar todas as pontes que, apesar de tudo, deviam aproximar o PS dos partidos com tradição de governo em Portugal, espalhando minas e armadilhas por um terreno que terá um dia de ser percorrido – seja numa direcção, seja noutra.
Em Portugal não foi apenas a situação económica que se degradou nos últimos anos – foi também a capacidade de dialogar, até tão simplesmente de falar. Se alguém duvidasse bastar-lhe-ia ter assistido a estes dois debates. Na verdade, apesar de se apresentarem com algumas propostas (mais Seguro do que Costa), quem sentiu realmente que estavam ali dois líderes a batalhar por algo que realmente valesse a pena, para além do ficarmos a saber quem-é-melhor-para-derrubar-os-outros-de-forma-a-assim-irmos-para-lá-nós? Na verdade, apesar de dizerem que olham para o futuro, que dizer de dois líderes que vivem bem com o facto de os seus programas retomarem muito do programa de José Sócrates em 2009, exactamente o programa que nos levou de cabeça para o abismo, o programa que não percebeu que o mundo tinha mudado?
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