Estarão os liberais portugueses obcecados com a mitologia grega e com a psicanálise de Freud ou apenas empenhados em superar de vez as questiúnculas doutrinais que têm atrapalhado a solidificação e avanço das ideias de John Locke e de Adam Smith em solo nacional?
Começo com esta provocação a análise do livro Juntos, somos quase um 31. Liberais à solta!, lançado no início deste mês pela Alêtheia / Oficina da Liberdade, pois é a segunda vez, em menos de um ano, que me deparo com os dramas de Édipo, Laio e Jocasta em textos relacionados com o liberalismo em Portugal. No caso em apreço, coube a Gabriel Mithá Ribeiro, um dos 29 autores deste volume, socorrer-se do lendário parricídio para desenvolver o seu raciocínio, mas a mais significativa das referências foi anterior, lançada num texto de 2018 por Carlos Guimarães Pinto, presidente em exercício do novo partido Iniciativa Liberal (IL).
Carlos Guimarães Pinto, que é também um dos “liberais à solta” deste livro, recua nesse escrito às décadas de 80 e 90, quando a palavra “liberal” era utilizada em Portugal como um insulto quase ao nível de “fascista”, e só o economista Pedro Arroja, com a reconhecida capacidade que possui de conviver com vitupérios, se atrevia a defender sem subterfúgios a importância do capitalismo, da concorrência, do livre comércio, da propriedade privada e da frase-choque setecentista “laissez faire et laissez passer, le monde va de lui même”. Essa viagem ao nosso passado recente pretendia mostrar que os vários autores dos inúmeros blogues que, a partir de 2003, se lançaram na defesa das causas liberais são, muito naturalmente, filhos de Arroja, e que, cumprindo à risca o preconizado pela Primeira Escola Vienense de Psicoterapia, foi necessário que patriarca e respectiva descendência se digladiassem para que a transmissão do testemunho pudesse ocorrer.
Mais do que o desencanto contemporâneo de Pedro Arroja com o liberalismo, interessava a Guimarães Pinto explicar a forma como essa atitude de confronto se repetia nos dias de hoje, numa espécie de movimento de eterno retorno, fazendo com que alguns dos filhos de Arroja lançados pela blogosfera se envolvessem em acesas discussões com os netos de Arroja que entretanto trataram de fundar partidos políticos liberais. Poderíamos concluir, à semelhança do que chega a fazer o presidente da IL, que estamos na presença de gente cujas veias são percorridas por sangue envenenado, mas talvez seja mais correcto admitir que há vários liberalismos (ou, pelo menos, várias aproximações ao liberalismo) e que, à semelhança do que acontece com o(s) socialismo(s), não é difícil que as diferenças de opinião terminem em altercações mais ou menos sonoras. Com a saudável vantagem, para o liberalismo português do século XXI, de ainda não terem existido episódios que envolvam picaretas.
Num dos textos deste livro, assinado por um dos mais consequentes políticos liberais da última década, alerta-se precisamente para os problemas do dogmatismo, dos concursos de pureza, do inevitável desgaste que emerge quando se substitui o pragmatismo pela lógica infantil do “eu sou mais liberal do que tu”. Adolfo Mesquita Nunes, o político em causa, sabe do que fala: faz parte de um partido (CDS) em que a corrente liberal é minoritária quando se discutem teorias e ainda mais minoritária quando, em contexto governativo, se passa da teoria à prática; e, ainda assim, conseguiu levar as águas do liberalismo ao seu moinho quando liderou, com inegável sucesso, a pasta do turismo no XIX Governo Constitucional.
O capítulo que dedicou a esta obra intitula-se “Faz sentido um partido liberal?” e nele são abordadas, do ponto de vista da eficácia, as duas formas de espalhar as ideias da liberdade política e económica pelo sistema circulatório de um país sem grandes tradições nessas áreas: uma delas passa por tentar reunir os liberais num novo partido; a outra, por fazer com que eles se distribuam pelos vários partidos já existentes (desde que estes não sejam, obviamente, partidos totalmente incompatíveis com o liberalismo, como será o caso dos que se inspiram nas ideologias marxista ou fascista).
Quem acompanha alguns dos debates (palavra optimista, nem sempre adequada) que se vão desenvolvendo nas redes sociais, já leu certamente algumas sugestões de que o perfil de Mesquita Nunes seria mais adequado ao recente IL do que ao já histórico CDS. No entanto, e pelo menos enquanto não se cansar de remar contra a maré, fica a ideia de que o centrista ainda não perdeu a esperança no método seguido por Margaret Thatcher, e que consistiu, basicamente, em convencer o Partido Conservador da bondade de uma governação carregada de medidas económicas liberalizadoras inspiradas em Milton Friedman e em Friedrich Hayek, algo que também não foi nada fácil para a Baronesa, e que se deve ter tornado ainda mais difícil quando os velhos tories descobriram que o austríaco favorito da “dama de ferro” escrevera um ensaio intitulado Why I am Not a Conservative.
Às reticências de Adolfo Mesquita Nunes podem os novos movimentos/partidos responder com a veemência com que altos dirigentes do PSD e do CDS se afastam, mais do que o próprio Diabo da cruz, da palavra “liberalismo” (do PS, nestes tempos de Geringonça, nem vale a pena falar). No entanto, devemos reconhecer que essas reticências se justificam historicamente, e basta analisar o século XIX português para comprovarmos a existência de múltiplas visões liberais e da dificuldade em manter uma união, mesmo que mínima, no seio de uma família deste tipo. Esta é, aliás, uma maneira interessante de ligar este capítulo com o que o antecede, da responsabilidade de Rui Albuquerque e provocatoriamente chamado “O liberalismo português nunca existiu”. Nele são descritos os desentendimentos posteriores à revolução portuense de 1820 e a dificuldade então sentida para detalhar um programa político mais abrangente do que o simples desejo de acabar com o Antigo Regime. Os intitulados liberais dessa época eram muito pouco homogéneos, empolgavam-se com coisas diferentes (a maioria com as ideias francesas, alguns com as britânicas), acabaram por se dividir em correntes (vintistas, cartistas) que, algum tempo depois, se subdividiram novamente, e, em certas alturas, pareciam concordar apenas na aversão que sentiam pela figura de D. Miguel. É provável que Mesquita Nunes esteja a pensar neste tipo de cenários quando lhe falam de um partido liberal.
É justo salientar que este livro, editado por José Bento da Silva, parece conviver bem com a heterodoxia, dando espaço, além do liberalismo clássico, à divulgação da filosofia libertária (os “hippies da direita”, de acordo com o que aprendi no texto de Miguel Botelho Moniz), do Objectivismo de Ayn Rand, e até, decisão polémica, do programa económico de Paulo Guedes, ministro do Governo de Jair Bolsonaro.
O volume está dividido em quase três dezenas de capítulos, sendo alguns deles de âmbito histórico-filosófico mais geral e outros mais focados em temas específicos (segurança social, saúde, mercado de trabalho, liberdade de expressão, etc.). Não é certo que todos os textos sejam acessíveis a todos os leitores (há três ou quatro bastante técnicos e mais direccionados a pessoas com alguma formação na área económica), mas a maioria dos autores pensou no “consumidor médio” quando se sentou a escrever, o que bate certo com o respeito pelo mercado subjacente ao liberalismo. Se isso será suficiente para clarificar o grande trinta-e-um em que algumas pessoas querem transformar a simples ideia da liberdade política e económica, só o tempo o dirá. Para já, deve-se sublinhar o esforço e o mérito da iniciativa.