No passado dia 11 de setembro, Lucília Gago, Procuradora-Geral da República, participou numa audição na Comissão de Assuntos Constitucionais, Direitos, Liberdades e Garantias, onde proferiu declarações que trouxeram à tona um tema sensível e, infelizmente, ainda muito presente na nossa sociedade: o machismo estrutural.

Ao falar sobre a falta de recursos humanos no Ministério Público, Gago mencionou que a predominância de mulheres, especialmente em faixas etárias mais jovens, era um fator de “agravamento de constrangimentos”, associando essa situação à maternidade, gravidez de risco e licenças parentais. Este tipo de discurso revela uma visão discriminatória que merece ser contestada.

Um dos problemas mais evidentes no discurso da Procuradora-Geral é a contradição flagrante entre a pressão social para aumentar a natalidade e a desvalorização da maternidade no contexto laboral. Vivemos num país que, recorrentemente, alerta para os perigos de uma população envelhecida, apelando à necessidade de mais nascimentos para garantir a sustentabilidade da segurança social. Contudo, ao mesmo tempo, as mulheres que decidem ser mães são vistas como um “fardo” no local de trabalho, prejudicadas nas suas carreiras e, frequentemente, excluídas de oportunidades de promoção ou melhoria salarial.

Esta incoerência revela um machismo profundo que atravessa tanto o discurso público como as práticas empresariais. Por um lado, exigimos que as mulheres contribuam para a “salvação” do país através da maternidade, por outro, penalizamo-las por o fazerem.

PUB • CONTINUE A LER A SEGUIR

As mulheres não podem continuar a ser pressionadas a ter filhos e, ao mesmo tempo, vistas como funcionárias menos desejáveis por conta dessa mesma escolha. É um ciclo de injustiça que reforça desigualdades e perpetua a discriminação.

O que Lucília Gago parece ignorar é que o verdadeiro “constrangimento” não está na presença de mulheres que escolhem ser mães no mercado de trabalho, mas sim no preconceito que essas mulheres enfrentam.

Inúmeros estudos comprovam que a disparidade salarial entre homens e mulheres aumenta de forma significativa após o nascimento do primeiro filho. Este fenómeno é um exemplo claro de como a sociedade valoriza de forma desigual o trabalho masculino e feminino, criando barreiras invisíveis, mas concretas, à progressão das mulheres nas suas carreiras.

Não são as licenças de maternidade ou os períodos de amamentação que causam a falta de recursos no Ministério Público ou em qualquer outra instituição. O que realmente causa esse défice são as políticas de gestão ineficazes que, em vez de promoverem a igualdade e a partilha de responsabilidades, perpetuam estereótipos de que o papel de cuidar dos filhos é exclusivamente das mulheres.

Em Portugal, a legislação permite uma divisão equitativa das licenças parentais entre mãe e pai, algo que deveria ser incentivado e implementado de forma mais eficaz para aliviar a pressão sobre as mulheres e combater a visão retrógrada de que estas são “um problema” nas instituições.

É fundamental percebermos que a decisão de ser mãe não deve ser vista como um obstáculo à carreira de uma mulher. Muito pelo contrário, a maternidade deve ser uma escolha respeitada e apoiada, sem que isso afete negativamente a vida profissional de quem opta por esse caminho. O Estado e as instituições têm o dever de criar condições para que as mulheres possam exercer os seus direitos reprodutivos sem temer represálias ou prejuízos na sua progressão de carreira.

Além disso, muitas empresas que adotam políticas de apoio à parentalidade, como a criação de espaços de amamentação e horários flexíveis, têm demonstrado que é possível gerir organizações de forma eficiente e inclusiva. Estas práticas não só melhoram a qualidade de vida dos trabalhadores, como também aumentam a sua motivação e produtividade. Infelizmente, a mentalidade conservadora que persiste em algumas instituições públicas, como se evidenciou no discurso de Lucília Gago, está ainda muito longe desta visão humanizadora e moderna de gestão.

Não podemos continuar a aceitar que uma figura com influência, como a Procuradora-Geral da República, contribua para perpetuar a ideia de que as mulheres, especialmente as jovens em idade fértil, são um “fardo” para o funcionamento das instituições. Este tipo de discurso só alimenta a desigualdade de género e reforça o preconceito contra as mulheres no mercado de trabalho.

A verdade é que a presença massiva de mulheres em certas profissões, como a magistratura, deveria ser vista como uma conquista da luta pelos direitos das mulheres e não como um problema a resolver.

O machismo presente no discurso de Lucília Gago revela uma visão ultrapassada e injusta, que desvaloriza as mulheres e a sua contribuição para o mercado de trabalho. Num momento em que se fala tanto de igualdade de género e de justiça social, é crucial que os líderes públicos tenham um discurso que promova os direitos das mulheres, em vez de reforçar preconceitos antiquados.

O verdadeiro “constrangimento” que afeta o Ministério Público e tantas outras instituições não é a presença de mulheres, mas a falta de políticas que promovam a igualdade e a inclusão. Só através de uma mudança de mentalidade e de uma valorização real da maternidade e da parentalidade poderemos construir um mercado de trabalho mais justo e equitativo para todos.