O artigo “DGS: Interdito vacinar crianças contra a Covid-19!” publicado no Observador peca por demasiadas inverdades, erros e omissões, a começar pelo título, uma vez que não há interdição de vacinar crianças contra a Covid-19 nem caberia nas atribuições da Direção Geral de Saúde (DGS) tomar tal decisão.

No início da pandemia ainda não existia a perceção da gravidade que a doença e hospitalização poderiam vir a ter na população pediátrica. Com a progressão da pandemia, de acordo com os dados publicados pela UNICEF registaram-se até Dezembro de 2023 cerca de 51 milhões de casos de Covid-19 em crianças de idade inferior a 14 anos (dados de 105 países) e 12 mil mortes (dados de 95 países). Quando em Outubro e Novembro de 2021 a Food and Drug Administration e a European Medicines Agency (EMA) autorizaram o uso de emergência da vacina Pfizer-BioNTech para a faixa etária dos 5-11 anos de idade, as autoridades de Saúde dos diferentes países adotaram diferentes abordagens para a aprovação ou recomendação da vacinação em crianças saudáveis ou com fatores de risco, que foram sendo atualizadas de acordo com a monitorização científica acumulada, nomeadamente no que respeita ao rácio risco-benefícios.

Os relatórios técnicos do Centro Europeu de Prevenção e Controlo das Doenças (ECDC) publicados regularmente a partir de 2020 dão uma visão geral das estratégias de vacinação (primária e de reforço) e das referidas atualizações, para as crianças das faixas etárias 6 meses-4 anos e 5-11 anos. Refira-se a título de exemplo o caso paradigmático da Dinamarca, o primeiro país europeu a incluir as crianças de 5 a 11 anos de idade nos grupos elegíveis para a vacinação primária, mas que reverteu essa decisão em 2022 no que respeita às crianças saudáveis, decisão baseada no conhecimento científico adquirido ao longo de dois anos de pandemia. No entanto, essa alteração estratégica que se verificou também noutros países europeus não se traduziu em “interdições”. Na Europa, a vacinação primária em todas as crianças na faixa etária 6 meses-5 anos foi recomendada na Bulgária, Chipre, Grécia, Irlanda, Lituânia, Malta e Polónia, e fora da Europa, no Brasil, Estados Unidos da América (EUA), Canadá e Israel. Referindo-se ao Brasil e aos EUA, a articulista refere influências políticas associadas a cores partidárias, ignorando que as presidências de Bolsonaro e Trump foram responsáveis por milhares de mortes devido a uma política negacionista da Covid-19. No caso do Brasil, a vacinação em crianças para 2024-2025 está comprometida devido à apresentação pelo Partido Liberal (bolsonarista) de um projeto de decreto legislativo que contraria a decisão do Ministério da Saúde.

Em Portugal, a estratégia de vacinação implementada no Plano Nacional de Vacinação contra a Covid-19 em Dezembro de 2020 vem explicitada na Norma 2/2021 da DGS, a qual remete para a última fase do Esquema Primário as crianças dos 5 aos 11 anos de idade, tanto as portadoras de patologia de risco como as saudáveis. A estratégia de reforço sazonal Outono-Inverno para 2022-2023 e 2023-2024 vem consignada respetivamente nas Normas 8/2022 e 5/2023 que definem os grupos elegíveis em função do risco para doença grave, hospitalização e morte por Covid-19. Esses grupos elegíveis excluem as pessoas saudáveis dos 5 aos 49 anos de idade (2022-2023) e dos 5 aos 59 de idade (2023-2024), as quais não ficam interditas de se vacinar, podendo fazê-lo a título particular mediante prescrição médica. Por último, a Norma 8/2024 recomenda os critérios de elegibilidade para o Esquema Vacinal Primário e Reforço Sazonal em faixas etárias a partir dos 6 meses de idade para 2024-2025, sem qualquer menção à interdição da vacinação em crianças saudáveis.

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Contrariamente ao que é referido no artigo do Observador, existe extensa produção científica sobre a eficácia das vacinas. Na base de dados PubMed contam-se 9.298 publicações relativas a “vacinação Covid-19 em crianças” (último acesso a 24/10/2024), das quais 1.596 incluídas nas categorias de artigos de revisão, revisão sistemática, estudos observacionais e meta-análise, que cobrem as mais diversas matérias: estudos coorte, efeitos da Covid-19 em crianças (ex. doença cardiovascular, síndrome inflamatória multissistémica e Covid longa), avaliação de riscos e benefícios, e levantamento de dúvidas e receios dos pais sobre a vacinação dos filhos. Relativamente aos dados sobre efeitos adversos das vacinas Covid-19, estes estão bem documentados nos registos de farmacovigilância do Vaccine Adverse Event Reporting System, o sistema EudraVigilance operado pela EMA, e o INFARMED, sendo infundadas as acusações às autoridades de Saúde de ignorarem e ocultarem os efeitos adversos no balanço riscos-benefícios. Salvo melhor informação até à data nenhuma entidade reguladora da Europa e dos EUA tem ignorado esses efeitos adversos para promover estratégias de vacinação de alto risco. E não são seguramente “cartas abertas” (que a articulista classifica de pareceres!) subscritas por profissionais de saúde que incluem “médicos pela verdade” sancionados pela respetiva Ordem por manifestarem opiniões e comportamentos lesivos da Saúde Pública, e outros que andaram a promover a utilização da hidroxicloroquina e da ivermectina contra a covid-19 sem que para tal existisse suporte científico, que pode conferir qualquer credibilidade ao argumentário contra a vacinação em crianças. Em sentido contrário manifestou-se a Sociedade Portuguesa de Pediatria e demais Sociedades Pediátricas europeias e dos EUA.

Conclui a articulista que as autoridades de Saúde em Portugal são “incompetentes porque não aprenderam com os erros”, e que “cometeram um crime porque esconderam e abandonaram vítimas”. Ora, o que tem pautado as estratégias de vacinação e diferentes abordagens na vacinação de crianças não são erros e(ou) incompetência, mas sim o estado da arte sobre todas as matérias abrangidas pela pandemia, ou seja, é a acumulação do conhecimento científico que nos permite hoje saber mais do que se sabia em finais de 2019 quando foram reportados os primeiros casos da doença, e amanhã saber mais do que se sabe hoje sobre os efeitos da Covid longa e as novas subvariantes que resultam da evolução do SARS-CoV-2. Quanto à acusação de crime, presume-se que tenha sido baseada numa referência em hiperligação ao mural de desinformação negacionista Página Um que acusa o Infarmed de abandonar à sua sorte centenas de adolescentes e jovens adultos com reações graves à vacina contra a covid-19.

A Organização Mundial da Saúde declarou a 5 de maio, o fim da emergência de saúde para a COVID-19 a nível global. No entanto, o coronavírus SARS-CoV-2 “está para ficar” e continua a evoluir, o que exige das autoridades de Saúde um continuado empenho em contrariar as forças de bloqueio à vacinação das crianças por via de uma mensagem pedagógica e tranquilizadora aos pais.