Texto originalmente publicado pelo portal dos Jesuítas em Portugal, Ponto SJ.
No início Deus disse… e, ao dizer, criou. Adão deu nome a todos os animais selvagens, agradeceu a Deus por Eva, e este comunicava-lhe as suas intenções e interdições. Eva, a primeira vez no relato em que toma a palavra, é para responder à astúcia da serpente. Será que alguém a ouviu? Na última década, a voz das mulheres tem-se feito escutar cada vez com mais intensidade, o feminismo galgou as margens da ideologia e encontra-se amplamente difundido. Mas será que já aprendemos a ouvi-lo?
O feminismo é uma corrente de pensamento plural. Por isso mesmo, é difícil propor uma definição que o retrate fielmente, pois hoje ele vai bem mais longe do que a reivindicação de igualdade de direitos. Mas tal não nos deve impedir de tentar descortinar qual é o filão que o unifica. Com este texto, tentarei fazer um exercício de escuta do feminismo, apresentando-o na sua própria voz, para num segundo momento apresentar as razões da minha resistência a partes essenciais da sua narrativa, e, finalmente, sugerir uma alternativa à questão: “qual é o lugar da mulher na Igreja?”
A história desta corrente de pensamento remonta ao século XVII, ganhando corpo como movimento de protesto no seio das sociedades industrializadas do século XIX. Centrado na defesa da igualdade de direitos entre homens e mulheres, este movimento denuncia os preconceitos que cingem o feminino à fragilidade e ao excesso de sentimento, e que lhe apontam uma suposta capacidade intelectual inferior.
No século XX, a politização da esfera privada – sob a máxima «o pessoal é político» – permitiu historizar as relações entre homens e mulheres, colocando em questão os papéis socialmente aceitáveis dos sexos, a organização familiar, a distribuição dos encargos domésticos, o lugar do corpo e da sexualidade. A questão da diferença sexual ganhou outra expressão quando o feminismo se encontrou com a pós-modernidade – principalmente a corrente francesa: Derrida, Deleuze, Foucault – e em particular com as teorias do género.
Inspiradas pelos estudos de indivíduos intersexo, as teorias do género começaram por defender que o desejo sexual, o comportamento sexual ou a identidade sexual, não dependem exclusivamente de estruturas anatómicas, de cromossomas ou de hormonas. Quando uma teoria do género defende que este é mero construto social, sem qualquer relação com os elementos supracitados, estamos diante da polémica ideologia de género.
Do encontro com a pós-modernidade e com as teorias de género, emergem dois conceitos-chave para o feminismo: patriarcado e heteronormatividade. De forma breve, o patriarcado é um sistema social fundado no monopólio masculino do poder, enquanto que a heteronormatividade consiste em assentar na diferença sexual a organização da sociedade. Neste modelo organizativo, a única expressão amorosa legítima é heterossexual, tem em vista a reprodução, e molda os papéis sociais de forma a servir esta visão.
Para o feminismo, a sociedade ocidental – e a maioria dos modelos sociais no mundo – foi erigida a partir da diferença sexual, baseada numa suposta superioridade masculina em todos os campos. Esta suposta superioridade normalizou relações de caráter abusivo, disponibilizando um só papel para o feminino: submissão. Apesar de alterações legislativas substanciais nas últimas décadas, podemos reconhecer este traço no imaginário feminino atual, marcado pelos valores de disponibilidade, mansidão e subserviência.
Feito este excurso pela história do feminismo, é evidente que este põe em causa o que entendemos como natural, cultural e social. Esta corrente de pensamento move-se entre o polo da denúncia de construtos sociais e o do reconhecimento da diferença sexual (a adesão às teorias do género varia nas distintas correntes do feminismo). O filão que creio ter a capacidade de unir as diferentes visões feministas é a rejeição da diferença sexual como pedra-angular da nossa organização social. E isto deve impactar a forma como escutamos e compreendemos o feminismo.
O feminismo é mais do que a reivindicação de igualdade de direitos. É uma nova compreensão do feminino, politizando a experiência individual: ao apontar que a experiência singular de opressão – uma mulher explorada – é vivida numa instância coletivamente partilhada – todas as mulheres são vítimas de opressão –, as mulheres, como um todo, tornam-se um agente político. E a sua agenda é clara: rotura com a visão anterior de uma sociedade assente na diferença sexual.
Pessoalmente, reconheço ter resistências quanto a alguns elementos da narrativa feminista, principalmente no que toca ao relato da história da Humanidade centrado na rivalidade homem-mulher, apresentada como relação opressor-oprimido. Sem negar o androcentrismo da nossa história, esta é marcada não só pelo preconceito, mas também pela cooperação entre homens e mulheres, em sociedades até há bem pouco tempo marcadamente guerreiras e agrícolas, onde a força e destreza físicas eram fatores importantes na organização da sociedade. Não podemos negar as injustiças, mas creio que podemos ser mais bondosos na forma como olhamos a nossa história e as condições em que a nossa cultura emergiu.
Estas resistências não me levam a desqualificar a legítima denúncia do evidente estatuto subalterno da mulher na nossa sociedade. O feminismo coloca-nos diante de uma premente pergunta: pode a diferença sexual ser a base da sociedade, determinando os papéis a desempenhar? Estou convicto que não, e que este traço ainda presente nas nossas relações homem-mulher, é um atavismo que urge eliminar.
No seio da Igreja Católica, como o Papa Francisco várias vezes apontou, há ainda caminho a percorrer. E o primeiro obstáculo ao diálogo encontramo-lo na pergunta “qual é o lugar da mulher na Igreja?” Expressa desta forma, esta questão poderá revelar que não estamos a escutar quem nos interpela, pois definimos um espaço assente na diferença sexual para entrar numa conversa com quem crê que esta não deve ser relevante na organização da sociedade.
De forma a entrar num diálogo fecundo, temos de estar mais disponíveis a começar um processo do que a solucionar um problema. Devemos encarar o feminismo como uma oportunidade para aprofundar o mistério da nossa fé, que desde os seus inícios nos vai convidando a deixar cair os preconceitos em relação a nação, raça, classe, parentesco, e mesmo sexo, como diz S. Paulo:
Pois pela fé que vos une a Jesus Cristo são todos filhos de Deus. Com efeito, todos os que foram batizados em Cristo revestiram-se das qualidades de Cristo. Não há diferença entre judeus e não-judeus, entre escravos e pessoas livres, entre homem e mulher. Agora constituem um todo em união com Cristo Jesus (Gal 3, 26-28).
A pergunta que podemos fazer, respeitando as distintas sensibilidades é: “como podem os batizados servir Cristo e a sua Igreja?” E a partir daqui ousar ter uma boa conversa. Reconheço que não sei onde é que esta conversa nos poderá levar. Sei que ela não deve ignorar o relato genesíaco, nem outras passagens da Sagrada Escritura que reforçam a complementaridade entre homem e mulher. Mas esta complementaridade, em fidelidade ao mesmo relato do Génesis, não pode nunca resultar numa submissão da mulher, pois esta submissão é, desde o início, uma consequência do pecado original, e como tal, não conforme ao desejo de salvação de Deus (Gn 3,16).
Devemos arriscar pôr em prática o princípio “o tempo é superior ao espaço”, que o Papa Francisco nos apresenta na exortação A Alegria do Evangelho, e despoletar um processo, correndo o risco de errar. A tradição intelectual católica, nos seus dois mil anos de história, ensina-nos que o maior perigo não é o erro, mas um coração empedernido. Um erro será corrigido, pois a verdade vencerá sempre. Mas um coração de pedra não é capaz de escutar Deus, e essa é a grande tragédia: perdermos uma oportunidade para O escutar e Lhe obedecer.