Texto originalmente publicado pelo portal dos Jesuítas em Portugal, Ponto SJ.

Alegro-me com o momento atual de atenção generalizada à discriminação e às injustiças que assolam a nossa sociedade. Mas não resisto a franzir o sobrolho quando me encontro diante de comentários como “és homem, não entendes”, “por seres branco não compreendes”, ou ainda “se discordas és homófobo”. Naturalmente, pelo ódio e exclusão que já despoletam, perturbo-me mais quando escuto “volta para a tua terra”, “o lugar da mulher é na cozinha” ou “homossexualidade é perversão”. Contudo, creio que em todas elas encontramos um excesso de sentimento e um défice de razão.

Tem-se generalizado um tipo de discurso no espaço público em que o que releva não é a opinião, os valores e o caráter de alguém, mas sim a cor da sua pele, a sua orientação sexual, o seu género, ou a tradição religiosa a que pertence. Esta pulsão para identificar o sujeito com um coletivo é acompanhada por uma tendência em reduzir a complexidade das nossas relações em sociedade e toda a nossa história partilhada, a dois papéis sociais “todo-explicativos”: privilegiados e oprimidos. Isto é, em função do coletivo em que somos incluídos, somos opressores ou vítimas, e seremos julgados como tal.

Abundam narrativas de vitimização em que o “nós” se restringe à “identidade de pertença”, seja ela ser homem ou mulher, ser nacional ou estrangeiro, ser branco ou negro, heterossexual ou LGBT+. Aparentemente, parece que nos esquecemos que, além das “identidades de pertença” – centradas no género, ideologia, nacionalidade, orientação sexual, ou sectarismos religiosos – existem também “comunidades de pertença” – como família, bairro, cidade, nação e, no seio da Igreja católica, paróquias. Nestas, a primeira pessoa do plural – “nós” – pode ser conjugada de forma a incluir outros que não se encontram dentro do meu campo de afinidades ideológicas, identitárias, étnicas ou religiosas.

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Regresso ao ponto de partida: que da previsão constitucional que proíbe a discriminação em função da nacionalidade, sexo, raça, religião e orientação sexual, tenhamos passado a um estado de alerta social, é um grande feito e devemos louvá-lo. E muito há ainda por fazer para passar de um estado de alerta à efetiva correção das desigualdades. Contudo, na forma como debatemos, parece evidente que há uma degradação da nossa capacidade de pensar e sonhar juntos.

O semear constante dos interesses identitários no espaço público está a arrastar-nos para um estado de tempestade social em que as distintas identidades de pertença se fragmentam e se enquistam. Uma correção de trajetória é crucial, e creio que o poderemos fazer redescobrindo o bem comum e restabelecendo a confiança mútua.

Comecemos pelo bem comum. A deslocalização do centro da nossa atenção das comunidades em direção às identidades de pertença faz com que a atividade política negligencie o todo em função de fragmentos da sociedade. Este movimento de substituição tem um impacto claro na forma como analisamos a realidade: se o fragmento dita a forma como vejo o todo, o deslize em confundir “interesse de um segmento” com “interesse de todos” é previsível e, temo, inevitável.

Sendo indiscutível que há situações de injustiça que reclamam ações específicas e direcionadas, estas devem ser gizadas a partir de um pensamento que possibilite, ao mesmo tempo, a reparação da injustiça e a proposição de um caminho comum de realização pessoal e comunitário. O reconhecimento do “eu” é fundamental e deve ser preservado, mas quando sonhamos o destino dos nossos bairros, cidades, regiões e nações, quando discutimos temas como família e justiça social, temos de aprender a conjugar a primeira pessoa do plural.

Temos de ousar habitar um campo social em que outros existem, e em que o “nós” político é mais rico que os interesses da minha identidade de pertença. Devemos desejar integrar comunidades além do cluster identitário, e compreender que identidade é uma forma de fazer parte do todo. Urge que nos deixemos nortear pela vontade de construir um lugar onde talvez não estejamos de acordo em todas as matérias, mas em que possamos respeitosamente viver com o diferente, sem lhe negar dignidade nem horizonte de futuro.

E isto traz-nos até ao segundo elemento da nossa correção de trajetória: o restabelecer da confiança mútua. A divisão redutora da sociedade e da nossa história a dois simples papéis – privilegiado ou oprimido – em função da nacionalidade, sexo, raça, religião e orientação sexual, torce a realidade. Dois exemplos: exigir uma distribuição da riqueza justa não nos pode levar a considerar todos os empresários como “exploradores”; que existam casos de marginalidade entre pessoas que não nasceram em Portugal, não justifica que todos os estrangeiros – ou uma nacionalidade específica – sejam apodados de criminosos. A narrativa redutora arrasta-nos inevitavelmente para o conflito.

Este retorcer da realidade lança-nos numa guerra de todos contra todos, pois a visão de fundo é a de que há inimigos partilhados, mas não um desiderato comum. O outro não deve ser o rival com quem nos digladiamos na arena, mas alguém com quem faço caminho, como numa corrida em que o pé esquerdo de um está atado ao pé direito do seguinte: só alcançaremos a meta ao pôr-nos de acordo sobre o objetivo comum e acertando passo.

Restabelecer a confiança mútua é exigente, pois implica uma conversão dos nossos hábitos de raciocínio. Há muitas razões para a rivalidade e para a suspeita, algumas delas baseadas na biografia de cada um de nós. Mas há que começar por reconhecer a nossa pertença mútua e a imprescindibilidade da colaboração. O ponto de partida não pode ser o conflito, mas a confiança.

Estabelecer relações de confiança mútua, em que se possa conjugar a primeira pessoa do plural de forma verdadeiramente inclusiva, apontando um bem comum, será tarefa inacabada, em constante devir e atualização. Sendo exigente e árduo, é também o único caminho que vale a pena seguir.