A minha sobrinha nasceu no dia em que fiz 27 anos. Um dia inteiro de espera. Ao princípio da noite, já depois do parto, em trânsito entre a sala de recobro e a enfermaria, a minha irmã pediu para parar a maca para que pudéssemos vê-la, ao longe: uma minúscula figura aconchegada no peito da mãe, a cabecinha coberta de cabelo preto. Foi um presente de aniversário insuperável.

Desde cedo, a minha sobrinha e eu habituámo-nos a ter um tempo nosso. Percorremos jardins, subimos à Mãe d´Água, comemos gelados entre os patos, passeámos pela cidade sem compromisso. Sempre houve fluidez na forma como encaixávamos o prazer com a descoberta, a surpresa com o riso. Uma vez, de improviso, levei-a a uma exposição, Dias Úteis, de Catarina Botelho, na rua Anchieta, num edifício devoluto, aproveitado por artistas antes das prováveis obras de renovação. O prédio estava vazio, usado pelo tempo.  As escadas de entrada eram estreitas, íngremes e escuras. Em cada andar, nas salas vazias, de soalho puído, nas paredes sem reboco, algumas parcialmente pintadas outras por pintar, distribuíam-se as fotografias meticulosamente curadas. A perfeição das imagens, nítidas, claríssimas, evidenciava-se nas imperfeições do espaço. A minha sobrinha, pequena, de olhos abertos, muito atenta, caminhava de sala em sala, com a mão fortemente agarrada à minha. Não disse nada.

Mas aos dezasseis anos, quando começou a fotografar, a presença silenciosa daquela exposição falou.

Durante algum tempo, um dos prazeres partilhado por ambas era o de almoçarmos no Café dos Teatros, o restaurante que ficava ao lado do Teatro São Luiz, depois de uma caminhada pela cidade. Pedíamos sempre o mesmo: bife raspado com ovo a cavalo. Conversávamos, eu lia o jornal, às vezes apareciam amigas que já conheciam os nossos hábitos, ríamos. Um dia, chegámos ao Café e a gerência tinha mudado. Não havia bife raspado. Confirmei com a empregada de mesa que o menu tinha sido alterado. A minha sobrinha levantou os olhos da ementa, com tristeza disse: «ai Tia, e nós sem sabermos que estávamos a comer aquele bife raspado pela última vez… ». Aprendeu, assim, nos gestos simples dos dias úteis, a impermanência das coisas.

Da mesma forma que não prevemos, não conseguimos prever, qual o legado de uma vida, de uma ideia, de uma obra, não conseguimos saber quando um beijo é o último beijo, ou se fechámos, para sempre, a porta de casa. Nem se fomos às aulas pela última vez, ou se a música, proibida, se calou indifinidamente.

O que sabemos é que há legados que queremos que permaneçam e pelos quais lutaremos mesmo quando prevemos o seu fim. Especialmente quando prevemos o seu fim.

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