Corriam os anos 30 do século XX, quando se disseminava pela Europa um debate muito singular. Depois da crise da hiper-inflacção alemã de 1921 e da grande depressão de 1929 nos Estados Unidos, começa a criar-se e a intensificar-se a ideia de que as democracias se estão a transformar numa forma de regime obsoleta, afirmava-se que era uma ideia sem cabimento nas sociedades industriais, vendendo a ideia de que os parlamentos representavam meramente os interesses económicos, não exerciam convenientemente a representação do povo e perdiam-se em discussões e debates demasiado partidarizados, demonstrando uma grande ineficiência no que dizia respeito a tomar decisões, o que não era visto como profícuo em tempos de crise. Retórica que deslizou para uma crença vasta de que a melhor forma de regime seria uma forma de regime assertiva, que sabe tomar decisões e resolver os temas sérios com celeridade e prontidão. Situação que normalizava totalmente regimes iliberais. A discussão em vários países da Europa continental não era já entre democracia e ditadura, mas sim sobre que tipo de ditadura deveria ser adoptada.
Este debate pouco se fez notar no Reino Unido, Estados Unidos e na maioria do universo anglo-saxónico, países onde a democracia era um regime mais que estabelecido na aceitação popular. No entanto, na Europa continental, o índice de descrédito democrático era grande, havendo muitas forças políticas nacionalistas com os olhos postos na forma de regime da Itália de Mussolini, um sistema de partido único, sem liberdade de opinião ou manifestação, misturado com um certo declínio dos intelectuais, havendo muitos destes a deixarem-se tomar pela léria anti-democrática ou tomando posições condescendentes para com ela.
Tudo isto legitimou na Europa um debate perturbador sobre que tipo de regime ditatorial deveria ser implantado, o equivalente a uma sociedade de gazelas a debater que clã de leões as deveria governar.
Nisto foram surgindo diversos tipos de ditaduras com algumas semelhanças entre si, assim como diferenças substanciais.
O fascismo alemão inspira-se no fascismo italiano mas adiciona-lhe uma doutrina de supremacia racial de uma hipotética raça ariana sobre as hipotéticas raças impuras. O fascismo português adiciona um forte factor religioso, assentando nos ditames do código do direito canónico, ao mesmo tempo que se assume como laico, posteriormente faz saudações romanas inspirado no fascismo italiano e alemão, doutrina que abandona mais tarde por questões de conveniência, pois tornava-se-lhe difícil justificar a utilização de gestos nazis ao mesmo tempo que se assumia como Estado multi-racial. O fascismo espanhol apostava num modelo muito militarista, promotor da religião católica e da castelhanização de Espanha, suprimindo as restantes nacionalidades como os bascos, os catalães ou os galegos, castelhanização essa onde houve, inclusive, espaço para pensar em invadir Portugal.
Como podemos constatar, havia ditaduras para todos os paladares, vivia-se na Europa, numa espécie de ambiente de ditadura “à lá carte”.
Este ambiente surgia, em grande parte, de uma insatisfação generalizada nas classes trabalhadoras, que era legítima e estava relacionada com os profundos desequilíbrios que existiam na sociedade da altura, onde já escasseavam as esperanças de inverter os ciclos de fracas condições de trabalho que andavam de mãos dadas com fracas condições de vida. Este desespero social generalizado, misturado com as promessas fáceis das forças nacionalistas, fizeram com que as classes populares acreditassem que a melhor forma de regime, seria a forma totalitária, enfraquecendo cada vez mais as forças democráticas, que foram sendo suplantadas ou, por golpes de Estado, como aconteceu em Portugal, ou por intermédio de guerras civis, no caso de Espanha, ou até pela via democrática das eleições, como sucedeu na Alemanha.
No tempo histórico em que vivemos, nesta realidade de 2022, vivemos um tempo muito semelhante.
Nos Estados Unidos houve entre 2017 e 2021 um presidente completamente desprovido de decência política e cultura democrática, que polarizou ainda mais uma sociedade já polarizada, que teve influências russas na sua campanha de 2016, que disse o que disse sobre as mulheres, que não reprovou iniludivelmente a violência dos supremacistas brancos em Charlottesville que matou uma pessoa e feriu muitas outras, ou que, como recentemente se soube, pela boca de Mark Esper, ex-Secretário de Estado da Defesa, sugeriu atirar sobre os manifestantes das marchas por George Floyd com tiros nas pernas, ou disparar mísseis contra o México para combater os cartéis dizendo “ninguém saberia que tínhamos sido nós”, tal não era o nível de alucinação e distúrbio mental da criatura, alucinações essas que tinham de ser minuciosamente reprimidas, ou por Esper, ou pelos generais do Pentágono, quando a nação deveria estar a focar-se em temas bastante mais importantes naquele momento.
Quando Joe Biden, no início do seu mandato se dirige ao mundo dizendo “America is back!”, na Europa pensou-se, legitimamente, “até quando?”, e bem, porque além da popularidade de Biden se encontrar nas ruas da amargura e de, no partido democrata, não haver um aparente sucessor em escalada, o partido republicano, por sua vez, não se moderou, radicalizou-se ainda mais. Mesmo que Trump não se candidate nas próximas eleições, o que considero pouco provável, não faltarão trumpistas pululantes em digladio pela nomeação republicana, todos eles piores que a amostra. O trumpismo não morreu com a saída de Trump, os políticos mais sedentos de poder perceberam que aquele tipo de populismo continua a ressoar nos seus eleitorados, e dobram cinicamente a espinha para conquistar o voto, até Ted Cruz, antigo opositor interno de Trump, se rendeu aos meios do seu antigo arqui-rival. A própria questão do aborto, debatida actualmente face a uma futura decisão do Supremo Tribunal, é um claro reflexo disso, sendo que a maioria dos juízes do Supremo são afectos ao partido republicano.
Em França, pela terceira vez, um membro do clã Le Pen chega à segunda volta das presidenciais, clã com relações assumidas com o Kremlin, financiados pelo Kremlin e com uma notória simpatia pelo autoritarismo de Estado à maneira russa. Este ano, houve até a companhia de um personagem chamado Éric Zemmour, um novo actor político de extrema direita, que apresenta a sua extrema direita alternativa, com o seu próprio cunho. Em França já se está bem próximo da realidade dos anos 30, onde se debate que tipo de barbárie é a melhor barbárie.
Em Itália, Salvini, com a sua cara de Smurf engasgado, já fez parte de governos onde lhes foram dados ministérios. Outro amigo de Putin e do seu modus operandi.
Em Espanha, o Vox de Abascal já participa no governo regional da Andaluzia com apoio parlamentar e já conta com mais de 350 presidentes de câmara municipal por todo o país.
Na Polónia, o governo de extrema direita há 5 anos que escolhe juízes a dedo, o que significa que, na União Europeia, em 2022, há um país onde a separação de poderes não existe, pressuposto fundamental para fazer parte da união.
A Hungria de Orban, outro fã de impor regimes autoritários à moda de Moscovo, está, como sabemos, a criar restrições constantes à liberdade de imprensa, deterioração da independência judicial, enfraquecimento do sistema multipartidário, entre outros tipos de retrocessos democráticos.
Todos estes fenómenos políticos, entre muitos outros que se espalham pelo mundo como o Brasil de Bolsonaro, as Filipinas de Duterte (que está de saída, mas que deixa a filha na corrida pela Vice-Presidência do país) a AfD com os seus 80 assentos no Bundestag alemão, o PVV na Holanda, o FPO na Áustria, todos eles se alimentam na mesma base eleitoral que se encontra descontente essencialmente pelas mesmas razões, sendo a maior delas todas, a globalização.
Este vocábulo tem-nos sido constantemente mercadejado como a 8ª maravilha do mundo. A origem do fenómeno não é consensual, uns defendem que foram os chineses que deram início à globalização com a rota da seda, outros defendem que foram os portugueses com a rede de comércio intercontinental, outros defendem que foi o Império Britânico no século XIX, outros defendem que foi antes de Cristo, no período helenístico de Alexandre o Grande, porém, a verdade é que esta 8ª maravilha do mundo, da qual constantemente se exaltam as suas virtudes, tem defeitos grosseiros que nunca foram trazidos à tona e que, hoje, se manifestam nas nossas eleições, nos nossos parlamentos e nas nossas preocupações comuns.
A globalização do pós queda do muro de Berlim, com a sua política de abertura e aproximação entre blocos com interesses conflituantes, e com a entrada da China na Organização Mundial do Comércio em 2001 veio a causar uma das maiores disrupções económicas da história, seguida de uma violenta disrupção socio-política.
Esta nova globalização ajudou a criar grupos empresariais titânicos, como as gigantes tecnológicas ou os colossais bancos “too big to fail”, que dizimam a soberania dos Estados e a sua capacidade de actuação quando as coisas correm mal nos conselhos de administração destes grupos abissais. As desigualdades entre países foram atenuadas, porém, a desigualdade dentro dos países intensificou-se. Nos Estados Unidos e na Europa, a classe trabalhadora foi barbaramente desprezada e condenada à penúria e ao desamparo, a sua estabilidade económica e laboral foi-lhes completamente pilhada sem que lhes fosse deixada uma alternativa quando pegaram nas suas fábricas de regiões como o Rustbelt, Vale do Ave, península de Setúbal, e as relocalizaram na China ou outro qualquer país limítrofe, condenando ao desemprego e à subsidio-dependência pessoas demasiado novas para se reformarem, mas demasiado longevas para mudar de profissão em tão curto espaço de tempo. As elites urbanas, além de desconsiderarem esta classe, faziam questão de mostrar o seu desdém por estas pessoas que agora se manifestavam por empregos e condições de vida dignas. Muitas destas pessoas eram um eleitorado fiel das forças da esquerda americana e europeia que, outrora, ostentavam com orgulho a sua utilidade de classe para as economias nacionais, e até esse orgulho lhes foi retirado.
Esta classe, vendo-se desprovida do apoio das forças políticas que tradicionalmente a defendia, ficou órfã de representação política. A esquerda moderada tinha-os abandonado, a nova esquerda apenas se importava com questões identitárias e de género, e a direita moderada só se movia pelos eleitorados económico-financeiros. Durante anos, estas pessoas estiveram à margem da política, a maioria deixou de votar, o ressentimento para com o sistema que os abandonou depois de décadas de contributo crescia de dia para dia e, como é do conhecimento geral, quanto maior é o ressentimento, menor é a consciência, a sensatez ou o critério. E é nesta fase que surgem os populismos de extrema direita.
Após anos de fermentação dos ressentimentos de classe, os populismos de extrema direita encontram aquilo que é, para si, o ecossistema sócio-político perfeito, onde prontamente se hospedam. Um ecossistema onde o nível de atrito, rancor e decepção é tão intenso que até o argumento mais delirante ou estapafúrdio cola nas massas com uma facilidade perturbadora. É muito fácil exacerbar as paixões destas pessoas e dar voz à sua raiva, fazendo-as sentirem-se, finalmente, defendidas, como legitimamente merecem desde que o sistema as abandonou.
Este eleitorado não vai desaparecer tão depressa, tem tendência para engrossar os seus números de pessoas insatisfeitas com o sistema e encontra-se sequestrado por forças anti-democráticas que, chegando ao poder, transformarão os respectivos países em novas Hungrias e novas Polónias, Estados proto-fascistas onde a imprensa não é livre, a liberdade de opinião não existe, e a justiça é corrompida e manipulada pelos governos, onde não tardará a existir censura e repressão. Nunca esquecendo que estes movimentos estarão sempre debaixo da manipulação de outros blocos autoritários como Moscovo ou Pequim, que têm e sempre terão todo o interesse em rasgar as democracias ocidentais ao meio e fortalecer nelas o crescimento de regimes ditatoriais e torcionários semelhantes aos seus.
A liberdade está sobre assalto, e a verdadeira guerra ideológica está em curso há anos, há uma força sombria que tentará, durante anos, forçar a ideia de que o sistema está viciado, que os sistemas democráticos estão obsoletos, que será necessário um outro tipo de “democracia”, que não passará, no fundo, de um sistema político autoritário e opressor, no meio de uma variedade de sistemas autoritários e opressores, em relação aos quais acabaremos a debater qual deles o mais airoso e capaz de recolocar os nossos destinos nos caminhos do progresso e da virtude, como se tivéssemos regressado aos sinistros anos 30 do século XX.
Por tudo isto, torna-se urgente repensar os modelos económicos internacionais, torna-se urgente rever as políticas aduaneiras, torna-se urgente repensar as políticas de vizinhança, torna-se urgente debater se, em determinados aspectos, o melhor é fazer regredir a globalização pós-queda do muro de Berlim, recolocar barreiras aduaneiras em sectores estratégicos para a sobrevivência político-económica do nosso bloco civilizacional, debater a possível necessidade de uma reindustrialização da Europa e do ocidente e, sobretudo, fazê-lo sem constrangimentos ou inseguranças ideológicas.
Este será o grande debate da nossa geração, é nele que se desencadeia o desenlace mais transcendental do nosso tempo histórico, e será precisamente o seu desfecho que determinará se sobrevivemos como homens e mulheres livres, ou morreremos torturados num novo Ocidente opressor e torcionário de ditaduras “à lá carte”.